A Estante de Angélica

Angélica escrevia bem. Muito bem. E acostumada às leituras filosóficas, intelectuais e meditativas, ora se embrenhava no cerne dos pensamentos de Nietzsche, ora devorava, ávida de conhecimento, as mais finas linhas traçadas por Foucault. No entanto não havia público. Seus escritos ficavam trancafiados em alguma pasta do PC, meros bytes, a espera que sua dona se desvencilhasse de uma vergonha sem sentido que surgia quando seus dedos teclavam da primeira linha até o ponto final. Tinha um ímpeto de se expressar na "era na informação", onde se as maiores imbecilidades agora se propagavam facilmente por qualquer um em qualquer lugar no mar abstrato do ciberespaço, ela como pensadora, também teria mais do que nunca esse direito. Mas talvez sua principal revolta não residisse exatamente nos textos que ocultava.

Encostou-se no parapeito da janela, pôs-se a respirar a fumaça cinzenta do churrasco dos casebres ao lado.

Fazia um ano desde que tudo acontecera: Papai com terno Armani num caixão de madeira tão bem trabalhada que rendeu altos papos sobre design; família contida e elegante no velório; Monique Levy, loira altiva e portando cruelmente o colar e o par de brincos de esmeraldas que pertenceram à mamãe (e num pretinho não -tão- básico que deixava transparecer acima, mais do que era permitido para a ocasião); Helena e Athena impecavelmente vestidas com ar blasé e chicletes de menta, carregando flores murchas por obrigação. Já Aurélio encostado à namorada, sem piscar os olhos, deixava transparecer o que se passava em seu coração: o rosto apático, evidentemente já fora banhado pelas lágrimas. Viveu sua dor. E Isabella. Ahhh, Isabella. Não foi possível ampará-la mais, porque já tinha um exército suficente pra isso: tia Eulália, tio Cláudio e o restante de inúmeros amigos, clientes e conhecidos de papai encarregaram-se da sociável irmã. Coube à Angélica, muito mais frágil e emotiva, a oração solitária sob as olhadelas e risinhos de Athena e Helena.

Angélica passava agora os dedos pálidos pelo lado de fora da madeira carcomida da janela em cujos buracos á água da chuva não duvidava em passar, dando-lhe, nas épocas propícias, uma amostra grátis de um princípio de enchente, algo que ela jamais pensou que iria ver.

Já havia gastado no mês anterior para o conserto da fiação do chuveiro e não estava disposta a transformar o restante de sua pequena herança em outros consertos diversos, entre rachaduras, ralos entupidos, manchas de mofo no teto, enfim, reformas mais do que necessárias. A necessidade da compra do apartamento lhe tirara muito mais da metade da parte que lhe coubera de herança. Monique Levy, ela lembra-se muito bem, maquinara um jeito infalível de condená-la a viver tão longe quanto possível da "Mansão Chevalier", assim como à Isabella. Manteve por perto o robusto Aurélio para admirar-lhe a musculatura, como escultura viva e quente a caminhar por entre as colunas de mármore do hall. Ele seria útil tanto para entretê-la, assim como às meninas, ao mesmo tempo em que serviria como uma espécie de "ajudante particular" nos "serviços da mansão", por assim dizer.

O familiar bairro de Anápolis no entanto, servia bem para neo-expulsa Angélica. Apenas o apartamento a lembrava de sua nova condição. Já Isabella não conseguira se desprender com tanta facilidade do passado. Jardim Napolitano, mais próximo do palco de suas tragédias, lhe parecera mais adequado. Ainda assim a herança de Angélica fora capaz de garantir-lhe um lugar incrustado entre o centro polido e afrancesado de Anápolis e as principais avenidas. Estava ainda, afinal, "servida de todos os serviços". Não lhe foi permitido levar da mansão, as jóias, os jogos de talheres de prata e muito menos os copos de cristal Baccarat, mas o refinado Café Dulce,(onde ela se lembra de ter tido aulas de francês ao ar livre na companhia de um requintado Cappucino quando adolescente) e o Le Paon Mall, ainda eram símbolos do requinte do lugar onde ela se encontrava mais ou menos perto. Seu prédio parecia talvez, a única coisa um pouco destoante do restante. Custara relativamente barato, estava carcomido, parecia pertencer à outro lugar que não aquele, mas ainda assim era caro para a maioria dos mortais.

Ainda em seus devaneios, olhou para a estante abarrotada de seus cadernos de Latim, Francês, Espanhol, Italiano e livros de pensadores e intelectuais diversos, além dos livros "comuns". Para a sua montanha de papéis, todos xerox muito utilizados na poderosa Universidad de San Salvador. Tentou entender os motivos de seu desemprego após o término de contrato. Não era extrovertida, nem falante. Era tímida. Tinha poucos amigos. Era isso? O passado brilhante, o colégio tradicional, as formaturas, a rigidez educacional, o uniforme impecável e mais tarde os embates filosóficos travados na Universidad eram agora meras lembranças. O que Rebecca afinal sabia? Recordara-se então do episódio.

Rebecca era mais velha. Conhecera-a numa comunidade de admiradores de Elvis Presley, via redes sociais. O Orkut ainda possibilitava um espaço extraordinário para discussões e afinidades. Aos poucos surgiram as conversas. Percebeu que Rebecca pulava de emprego em emprego o tempo inteiro. Uma hora, auxiliar administrativa, outra vendedora de loja, outra balconista. Era demitida e readmitida com frequência. Devia uma certa soma à Unifuturo, que se esforçava para terminar. Pisava de "kitnet"em "kitnet", mas não dava conta de pagar os aluguéis. Desde que a conhecera, a cada momento Rebecca vivia de favores na casa de um conhecido, ou amigo. Mas ela ainda garantia, seria diretora de uma Multinacional.

Angélica ainda recorda-se de das fotos de Rebecca, sempre com alguns chapéus estilosos, bolsas e sapatos diversos. Convidara, apesar de saber dos riscos do mares eletrônicos, e talvez munida de compaixão por sua frequente situação, a colega para um "almoço" em seu novo e decadente espaço. Arrependeu-se segundos depois, ao lembrar-se de quem era agora, mas já era tarde. Rebecca chegara munida de chapéu preto meio de lado, salto alto, maquiagem radiante. O apartamento, inacabado, praticamente sem móveis, era a antítese completa do passado de Angélica. Talvez era agora Rebecca a munir-se de compaixão. Percebeu a inabilidade de Angélica para a cozinha, não era à toa que fora feito um horrível macarrão básico de molho ralo. Para quem fora servida a vida inteira com taças de água em bandejas de prata, Angélica era como um animal criado a vida inteira em cativeiro e recém-solto na selva.

A poeira se acumulava na mesa de madeira carcomida. O mau cheiro do banheiro e das roupas acumuladas de Angélica postas para secar no espaço pequeno e fechado da área de serviço, desprendiam-se de seus cômodos e invadiam a sala. Ela era amante dos banhos, passara a infância apreciando a essência "Badedas" num banheiro forrado à mármore de Carrara, em seu saudoso passado. Agora cheirava a queijo Pont L'Évêque. Lavava as roupas devidamente, mas não sabia sobre o que causava o problema.

A conversa sobre emprego surgiu. As afirmações inocentes de Angélica sobre um sistema desumano, a visão subjetiva e imprecisa de um candidato à emprego, as perguntas humilhantes e a necessidade de estabilidade soaram como um mal-entendido. Talvez fossem o bastante para finalmente escancarar em Rebecca uma arrogância que parecia estar mais do que evidente:

- "Não preciso implorar por emprego como você, tenho uma ampla rede de contatos, um excelente networking e por isso consigo tudo rápido, tanto que agora mesmo já estou trabalhando de volta... ".

O almoço se encerrou precocemente com pisadas duras do salto de Rebecca no piso empoeirado da sala e uma batida na porta frente. Angélica, no entanto sentira-se aliviada. Foi para o quarto: observou a cama desarrumada, os quadros sem moldura de Elvis, as cômodas amarelas de madeira de qualidade, talvez as únicas lembranças da mansão Chevalier em meio aos poucos móveis que pareciam pura sucata. Passou os olhos nos inúmeros currículos com seu brilhante e inútil passado acadêmico acumulados na escrivaninha. Sentou-se na cama. Voltou a observar a estante. Lá estavam seus cadernos de Francês...