O Ar da Libertação
Alcina gosta da sua independência. Não a trocaria por nada. Mas adoeceu. Já não dá conta da casa, cansa-se, cansa-se!!!
Vai tentando fazer o que pode. Procura, em tentativas desastrosas e com altos custos, uma empregada.
E sofre um mundo de desordem que lhe era estranha, enquanto uma chega e manda outra embora...
Até que chegou uma nova, que a tratava por TU, sem a conhecer, e a quem ela tratava por SENHORA, na tentativa de a fazer tomar consciência da asneira... mas não!
Mal chegava, encaminhava-se para a sala, sentava-se no sofá, ouvia as ordens sem atenção, abria o bar e bebia...
Era uma situação invertida, como invertida seria ela, ou fingia ser: Assediava a patroa.
Esteve no emprego dez dias, dos quais faltou três e foi sete.
Alcina blindava-se na sala de jantar, com os seus pertences secretos. Sentia-se prisioneira da empregada, seu carrasco.
Quieta e calada, observava.
Às tantas dera-lhe na telha trazer uma estranha. Banqueteavam-se com a sua comida sem lhe pedirem sequer licença e tentavam sugestioná-la a todo o momento.
Mordia-lhes não terem a chave da porta!
Pediam-na a cada instante.
Sempre séria, teve uma conversa com ela.
Conversa perdida.
O tratamento por TU continuou, as falinhas mansas continuaram e ela, na sala de janta!
Escrevendo, lendo, alheada.... atenta!
Um dia, o quarto ou quinto de trabalho, entrou com uma adolescente clara, radiosa e linda, que Alcina só interceptou a meio do hall, tão rápida e lesta entrou, como se toda a vida o tivesse feito.
- Hoje trouxe a minha filha, para me ajudar.
- Entraram para a cozinha, que Alcina limpara ligeiramente após o seu almoço.
Nas suas costas – costas com costas, de fato, quase que roçando-se que a cozinha é estreita, desataram a abrir o frigorífico, a caixa do pão (compras que Alcina fizera arredondando os noves e os quatros que os supermercados usam para iludir os incautos) e que se estafara ao transportá-las com esforço, em duas viagens.
Os víveres desapareceram num ápice!
Na manhã seguinte, às dez horas, Alcina Já estava à porta do supermercado.
Sem nenhum aviso nas vastas vidraças fechadas, tanto espreitara para dentro, que um segurança fardado viera, dizendo-lhe de lá:
- Só abre às duas!Está a ouvir? Só a -bre às du-as! – e batia com o indicador direito no mostrador do seu relógio de pulso.
Bem no alto, num enorme cartaz verde gritava, ao contrário do guarda:
“Este Estabelecimento Está Aberto Domingos e Feriados das 8.30 às 22 horas”
Nem mais!
Esforçamente, voltou costas.
Para Lá, era a descer, mas para cá era a subir, sem Santo André que a ajudasse... Boca aberta, arfando que nem um peixe acabado de ser pescado.
Como não havia comida, voltou lá às duas.
Pouco depois, entravam a empregada e uma outra companheira.
Com a sem-cerimónia do costume, bichanavam entre si
- Anda, come!
Não quis ver mais. Foi para o seu abrigo escrever, ler, ou simular que lia e escrevia.
Bem, limpava, lá isso é verdade, embora queixando-se do aspirador.
Alcina reflectia.
Claro que não é natural uma patroa muralhar-se num aposento por quatro horas!
De vez em quando ia ver como iam as coisas, tentando que a escutasse:
- Olhe, os animais já estão tratados. Por favor, faça isto ou aquilo.
Mais comedida na presença da adolescente de nome ininteligível, que ora era Nilde ou Neide e logo era outro parecido...
Perguntara-lhe o nome e ficara na mesma.
Quando as duas saíram, Alcina foi ver o que haveria para petiscar.
Não tinha fome.
Ainda bem! Porque na embalagem fechada que ela metera na caixa do pão só havia um resto:
Dois pãezinhos de leite, que devorou lixada da vida com o descaramento.
Assim, sem mais nem menos, via-se desgovernada de novo e por alguns dias outros valores mais altos se levantavam, rigor econômico absoluto, nada de compras.
Sentia-se pior do coração: falta de ar, de forças, tornozelos de hipopótamo... enfin, la routine habituel, como diria Obelix!
No dia seguinte ,intercepta a limpar os pés no tapete da entrada, outra jovem.
Pele muito escura. Olhos de brilho intensíssimo, como duas gotas de azeviche a saltar.
No terceiro dia, vai abrir a porta e apanha um susto: entra-lhe pela casa dentro, quase a empurrando, uma criatura cor de cobre, uma cor que há no centro de África, obtida pelo uso intensivo de um óleo especial, com aspecto de lutadora do Restling Challendge, um mulherão imenso, com um elaborado penteado de muita trancinha arruivada.
No ar: estás a ver, é esta aqui!... entre olhares.
Alcina sente a ameaça declarada.
Não sendo de ter medo à toa, vai quase a tremer para a sala de jantar.
E esta?!
Estão-me a preparar um golpe qualquer. De caras! E esta Fulana não se põe na rua sem uma boa justificação...
Pensa, Alcina! Pensa, pensa, pensa!
A do tratamento por tu, já gastaste. E em vão!
Pensa, Alcina, pensa!
Ficara de ir à Lacoste às três horas. Estavam à sua espera.
Vou num pulo buscar o saco de mão, com o telemóvel, e tento avisar a Lacoste de que só poderei ir às seis, seis e meia...
Iam-se esborrachando no corredor:
- Estás o olhar o relógio para quê, pergunta-lhe de supetão a Fulana.
Alcina salta e determina:
- - Daqui não saio! Nem um minuto!
De repente, olha:
O dossiê verde, com etiqueta pomposa Plano de Gestão e Tesouraria!
Gozava dos números e coluninhas feitas no computador pala sua prima, à profissional.
Este, manuscrito e rasurado, estava sempre ali na mesa, no meio de muita papelada dispersa: poesia, publicidade, revistas, num labirinto, a ver se lá não meiam o bico!
Havia outro dossiê no cesto das revistas.
Ela senta-se de pernas abertas no sofá, pega nele sem cerimônia, abre-o e começa a ler... Esteve com azar! Era o dossiê das receitas.
- Sabes fazer bolo de chocolate?
- Alcina acena que sim. E a outra, voltando às páginas:
- Olha, eu a falar nele e ele aqui! Hás-de fazer-me um bolo destes, ouviste?
A Lutadora apanhou as trancinhas num puxo grosso e encostou-se à parede do hall, enquanto Alcina safava as flores, a camilha de cetim com a toalha de renda.
- Para que é que estás com isso? Deixa estar!
- Não, não! Que me deu muito trabalhinho a fazer!
Vai puxando tudo para a cozinha, por causa do pó. E safa-se!
Conseguiu tirar o tapete, vá lá!
Poeira a rodos. Começam a esvaziar a despensa, a que ela chamava “destroços do Titanic”
...A anterior, Kátia, atirava porta dentro fosse o que fosse.
Disse porta?! Não, aquilo era a baliza da Kátia!
- Está tão escuro! Não tens luz em mais lado nenhum?
- Tenho, no teto, mas não chego lá... importa-se de me mudar as lâmpadas?
- Eu?!
- Pois, a senhora. Com esse escadote chega lá. Estão aqui as lâmpadas.
- Eu não mexo em fios elétricos!
- Não são fios, são casquilhos. Só que as lâmpadas estão escondidas dentro do suporte. Pousadas lá dentro, entende?
- Ná! Tens que chamar um técnico para te trocar as lâmpadas. Eu cá não lhes mexo!
Há três fontes de luz no corredor em U: dois candeeiros de mesa, dois apliques de parede, dois plafoniers de teto. Mas as lâmpadas destes fundiram-se há muito tempo. Todas as empregadas se negaram a mudá-las... nem fechadas estão, apenas pousadas nos florões de gesso patinado.
Entretanto, só de novo, lembra-se: Tenho de lhe falar no pano húmido!
Sai da sala, mas encontra a Lutadora a pegar num alguidarzinho com as pontas dos dedos, vinda da cozinha.
Volta, para arrumar a papelada. A sala de jantar parece um sarcófago.
A Kátia devia ter algum Kalifa na família: gerações e gerações de adaptação a tempestades de areia... Limpar o pó?! Pois sim! Via-se por todo o lado, preto a saltar do esbranquiçado, nos móveis, objetos, quadros... Então os quadros!
As suas parentas, no campo, com bichos a entrar e a sair, arcas de trigo e milho e grão e tudo e mais alguma coisa, não tinham assim pó em casa! Lembra-se de não ver pó, só agora se dá conta.
Como fariam? O terreiro era varrido até aos montes de lenha, às furdas, no meio das lages, à volta das pias escavadas na pedra, com água para as galinhas, perus malvados, patos cagões, marrecos barulhentos... e, no verão, regado a regador. Não havia pó.
E esta?! O meu quinto andar parece-se mais com uma tenda no meio do deserto!
Bem, acabou-se a história do aspirador. Vêm mostra-lhe os tubos: um deles não encaixa. Pois não, tem a abertura oval!
E esteve cá o senhor António a arranjá-lo ainda não há três dias!
- É bom, é dos antigos e olha que ainda os fabricam iguais, mas qualquer dia tens de pensar em comprar outro.
- Qualquer dia! Tamanha trancada levou que ficou sem conserto!
E há-de tardar o dia em que possa comprar outro.
Bom, hoje “já conseguiu” arrumar os seus papéis. Vai para a sala de estar e grita para fora:
- Se precisarem de alguma coisa, falem!
E pira-se.
- Mas ó! Olha lá, como queres que eu limpe este tapete sem aspirador?! Há quanto tempo é que isto não é limpo, hãn?
Não ouve nada, já se foi.
Depois, como o tempo passou e passou, diz-lhes:
Bem, hoje os pássaros ainda não estão tratados. Vamos lá, que eu explico-lhes.
A Fulana abre as molas, deixa cair as bases plásticas das gaiolas, atrapalha-se e lá vai Alcina: Apanha a chuva de sementes e excrementos, em cheio na cabeça... Já agora, despeja os tabuleiros, bufando, e dê-me lá um saco de areia para pôr um bocadinho no fundo, está a ver a Senhora?
Vai fazendo o trabalho pesado e a outra vai passando displicentemente a vassoura, caem cascas.
- Lá me estás a sujar tudo!
- Alcina tenta astuciosamente, sem tocar a Fulana que se achega, mudar as gaiolas, prender o fio... e a outra a olhar-lhe as unhas – que arranjara na véspera à noite – como se os seus dedos fossem duchesses com chatilly.
Vai murmurando:
- Eu ainda hoje não te fiz festinhas...
Nenhum pejo diante da Lutadora, apresentada à entrada como irmã anônima.
O cabelo de Alice esvoaça e cola-se-lhe à cara suada
- Hummmmmm, hummmmmm Olha lá, quando é que cortas este cabelo, hein?
- E apanha-o todo, e roça-o com as patas.
Aicina sacode violentamente a cabeça, escapulindo-se-lhe das patorras, da proximidade gulosa.
Estão as duas quase coladas a si, os seus dedos ágeis dão nós.
As duas patorras parecem de lama.
- Uma das Senhoras pode colocar a palma da mão debaixo deste tabuleiro? Desculpe lá, é mesmo só colocar a palma da mão, para eu fechar estas molas. A senhora, D. Fulana, pegue aqui, está a ver? É fácil!
- Vai tagarelando muito para esconder os nervos. Trabalha muito depressa, usa e abusa deliberadamente da palavra Senhora:
- E a senhora D. Fulana sussurrando ao seu ouvido:
- Hoje ainda não te fiz festinhas...
- Depois berra: Lá estás tu a deitar coisas no chão outra vez. Olha lá!
Limpou meia dúzia de gaiolas. O chão fica meio varrido, meio por varrer.
- Está na minha hora, olha lá! Eu cá vou-me embora! Anda lá daí, para não ficar aí esse entulho, vá! Ai, arranjaste aqui uma boa empregada. Fico contigo toda a vida, estás a ver?
- A Senhora é que arranjou uma boa patroa!
- Ai, tens-me aqui para o resto da vida!
E vai de lavar as mãos no lava-louças, e vá de ir mudar de roupa para o quarto do lado, porta aberta, com a acompanhante.
Lá se vão! Alcina escorre suor
-Ai, estás toda vermelhinha!
Enfim, porta fechada nas costas!
Uf!
Já, já, um duche! Ai, águinha, águinha....
Toca o telefone:
- Daqui, Lacoste! Então a senhora não apareceu?!
- Ah, vou já, desculpe, não confio nesta empregada sozinha em casa... Vou já!
Vai já é a despir-se a caminho da casa de banho.
Abre a torneira no máximo, encharca-se a correr, veste a primeira coisa que encontra.
Na Lacoste, desabafa. Tinha de ser, senão rebentava!
E a empregada de balcão passa a tratá-la que nem a um subordinado.
Mas o serviço foi feito e pago e quero mais é que ela vá ver se está naquela esquina!
Volta.
Tem de sair! Há uma semana em casa, não pode mais! Agarra o livro, abre a porta.
Trrrrrrimmmmm! A filha! A filha quer horas de conversa.
- Olha, querida, desculpa lá, queres ir ter comigo à esplanada do McDonald’s? Eu vou. Vou ler para lá, anda!
- Ah, olha, hoje adiei um exame pela primeira vez na minha vida, e....
- Anda lá, faz-te bem!
- Ah, não dá, estás a ver? Tenho de dar banho ao gato, a pele dele, sabes, vou ver se ainda apanho o veterinário.
Estás a ver como é que o Zen fica se o meto na caixa de transporte, não é? O pobre até vai dar saltos! O veterinário vai ficar....
- Olha, desculpa, depois ligo-te. Tenho de sair. Tenho de ir para a rua, se não vens, eu vou. Desculpa, sim?
Ela! Ela a apressar o telefonema da sua desatenta ouvinte palradora acerca de professores chanfrados, Frequências demasiado frequentes, inconstituicionalíssimamente frequentes!.
- Sabes, o pobre do universitário só se tiver razão em tribunal, estás a ver isto?! Vê lá que....
Uf, uf!
No MacDonald's:
Um café e um bolo, 1,50€
Pede um café e um bolo.
- Quanto é? Pergunta.
- O moço fica a olhar para ela, parado. Depois acena para o cartaz com o preço por entre a publicidade, sobre o balcão, em frente da caixa registradora.
- Ai, desculpe, estava distraída.
Senta-se na ponta de uma cadeira, abre o livro.
Está tolhida. Tem consciência do seu ar ridículo. Enfia a cara no livro e vai comendo ao mesmo tempo que aparenta ler.
Chega-se para o espaldar da cadeira aos pouquinhos. Agora um pé fora do sapato, o vestido tapa.
Aos poucos, aos poucos, muito aos poucos, a leitura envolve-a, os nervos desemaranham-se, vai ficando mais natural, mais com ar de gente.
O sol vem.
Puxa a mesa para um canto à sombra. Depois a cadeira.
Está lá ao fundo, ali mesmo, que a sombra é um ângulozito no chão.
Uma mulher sozinha, chávena à frente, inquieta, sem nada, os cotovelos erguidos e as unhas tamborilando umas nas outras, olha-a. Sente-se que está louca por soltar a língua. Até incomoda.
Arre!
A mulher tem-na na mira.
Mas que é isto?!
Ela gosta é de Homens! Bons! Que chatice!
Mergulha acintosamente o focinho na livro. O livro é excelente, fá-la sorrir, fá-la chorar.
Mas não se pode dar ao luxo de levantar os olhos.
Ora esta!
Só uma nota, que não anotei:
No primeiro dia, abanca no sofá, volta-se bem para ela de pernas abertas à homem, que no entanto o vestido tapa e pergunta-lhe de repente, como se perguntasse as horas:
- Olha lá, tu já fumaste?
- Não, nunca fumei. A minha filha é que fuma muito: dois maços por dia. Bem, os filhos... a gente proíbe, depois aconselha, mas crescem e agora....
Põe ponto final ao tormento.
Uf!
A gaja desligou-me o telefone na cara. Deve pensar que me estou a roer de medo. Que me deixou fula, já que sou tão fina que não me podem tratar por tu e que só digo senhora para aqui e para ali...
Ora Toma!
Sente-se outra!
Ai, o ar, o ar a entrar nos pulmões...
É tão bom!
Alcina gosta da sua independência. Não a trocaria por nada. Mas adoeceu. Já não dá conta da casa, cansa-se, cansa-se!!!
Vai tentando fazer o que pode. Procura, em tentativas desastrosas e com altos custos, uma empregada.
E sofre um mundo de desordem que lhe era estranha, enquanto uma chega e manda outra embora...
Até que chegou uma nova, que a tratava por TU, sem a conhecer, e a quem ela tratava por SENHORA, na tentativa de a fazer tomar consciência da asneira... mas não!
Mal chegava, encaminhava-se para a sala, sentava-se no sofá, ouvia as ordens sem atenção, abria o bar e bebia...
Era uma situação invertida, como invertida seria ela, ou fingia ser: Assediava a patroa.
Esteve no emprego dez dias, dos quais faltou três e foi sete.
Alcina blindava-se na sala de jantar, com os seus pertences secretos. Sentia-se prisioneira da empregada, seu carrasco.
Quieta e calada, observava.
Às tantas dera-lhe na telha trazer uma estranha. Banqueteavam-se com a sua comida sem lhe pedirem sequer licença e tentavam sugestioná-la a todo o momento.
Mordia-lhes não terem a chave da porta!
Pediam-na a cada instante.
Sempre séria, teve uma conversa com ela.
Conversa perdida.
O tratamento por TU continuou, as falinhas mansas continuaram e ela, na sala de janta!
Escrevendo, lendo, alheada.... atenta!
Um dia, o quarto ou quinto de trabalho, entrou com uma adolescente clara, radiosa e linda, que Alcina só interceptou a meio do hall, tão rápida e lesta entrou, como se toda a vida o tivesse feito.
- Hoje trouxe a minha filha, para me ajudar.
- Entraram para a cozinha, que Alcina limpara ligeiramente após o seu almoço.
Nas suas costas – costas com costas, de fato, quase que roçando-se que a cozinha é estreita, desataram a abrir o frigorífico, a caixa do pão (compras que Alcina fizera arredondando os noves e os quatros que os supermercados usam para iludir os incautos) e que se estafara ao transportá-las com esforço, em duas viagens.
Os víveres desapareceram num ápice!
Na manhã seguinte, às dez horas, Alcina Já estava à porta do supermercado.
Sem nenhum aviso nas vastas vidraças fechadas, tanto espreitara para dentro, que um segurança fardado viera, dizendo-lhe de lá:
- Só abre às duas!Está a ouvir? Só a -bre às du-as! – e batia com o indicador direito no mostrador do seu relógio de pulso.
Bem no alto, num enorme cartaz verde gritava, ao contrário do guarda:
“Este Estabelecimento Está Aberto Domingos e Feriados das 8.30 às 22 horas”
Nem mais!
Esforçamente, voltou costas.
Para Lá, era a descer, mas para cá era a subir, sem Santo André que a ajudasse... Boca aberta, arfando que nem um peixe acabado de ser pescado.
Como não havia comida, voltou lá às duas.
Pouco depois, entravam a empregada e uma outra companheira.
Com a sem-cerimónia do costume, bichanavam entre si
- Anda, come!
Não quis ver mais. Foi para o seu abrigo escrever, ler, ou simular que lia e escrevia.
Bem, limpava, lá isso é verdade, embora queixando-se do aspirador.
Alcina reflectia.
Claro que não é natural uma patroa muralhar-se num aposento por quatro horas!
De vez em quando ia ver como iam as coisas, tentando que a escutasse:
- Olhe, os animais já estão tratados. Por favor, faça isto ou aquilo.
Mais comedida na presença da adolescente de nome ininteligível, que ora era Nilde ou Neide e logo era outro parecido...
Perguntara-lhe o nome e ficara na mesma.
Quando as duas saíram, Alcina foi ver o que haveria para petiscar.
Não tinha fome.
Ainda bem! Porque na embalagem fechada que ela metera na caixa do pão só havia um resto:
Dois pãezinhos de leite, que devorou lixada da vida com o descaramento.
Assim, sem mais nem menos, via-se desgovernada de novo e por alguns dias outros valores mais altos se levantavam, rigor econômico absoluto, nada de compras.
Sentia-se pior do coração: falta de ar, de forças, tornozelos de hipopótamo... enfin, la routine habituel, como diria Obelix!
No dia seguinte ,intercepta a limpar os pés no tapete da entrada, outra jovem.
Pele muito escura. Olhos de brilho intensíssimo, como duas gotas de azeviche a saltar.
No terceiro dia, vai abrir a porta e apanha um susto: entra-lhe pela casa dentro, quase a empurrando, uma criatura cor de cobre, uma cor que há no centro de África, obtida pelo uso intensivo de um óleo especial, com aspecto de lutadora do Restling Challendge, um mulherão imenso, com um elaborado penteado de muita trancinha arruivada.
No ar: estás a ver, é esta aqui!... entre olhares.
Alcina sente a ameaça declarada.
Não sendo de ter medo à toa, vai quase a tremer para a sala de jantar.
E esta?!
Estão-me a preparar um golpe qualquer. De caras! E esta Fulana não se põe na rua sem uma boa justificação...
Pensa, Alcina! Pensa, pensa, pensa!
A do tratamento por tu, já gastaste. E em vão!
Pensa, Alcina, pensa!
Ficara de ir à Lacoste às três horas. Estavam à sua espera.
Vou num pulo buscar o saco de mão, com o telemóvel, e tento avisar a Lacoste de que só poderei ir às seis, seis e meia...
Iam-se esborrachando no corredor:
- Estás o olhar o relógio para quê, pergunta-lhe de supetão a Fulana.
Alcina salta e determina:
- - Daqui não saio! Nem um minuto!
De repente, olha:
O dossiê verde, com etiqueta pomposa Plano de Gestão e Tesouraria!
Gozava dos números e coluninhas feitas no computador pala sua prima, à profissional.
Este, manuscrito e rasurado, estava sempre ali na mesa, no meio de muita papelada dispersa: poesia, publicidade, revistas, num labirinto, a ver se lá não meiam o bico!
Havia outro dossiê no cesto das revistas.
Ela senta-se de pernas abertas no sofá, pega nele sem cerimônia, abre-o e começa a ler... Esteve com azar! Era o dossiê das receitas.
- Sabes fazer bolo de chocolate?
- Alcina acena que sim. E a outra, voltando às páginas:
- Olha, eu a falar nele e ele aqui! Hás-de fazer-me um bolo destes, ouviste?
A Lutadora apanhou as trancinhas num puxo grosso e encostou-se à parede do hall, enquanto Alcina safava as flores, a camilha de cetim com a toalha de renda.
- Para que é que estás com isso? Deixa estar!
- Não, não! Que me deu muito trabalhinho a fazer!
Vai puxando tudo para a cozinha, por causa do pó. E safa-se!
Conseguiu tirar o tapete, vá lá!
Poeira a rodos. Começam a esvaziar a despensa, a que ela chamava “destroços do Titanic”
...A anterior, Kátia, atirava porta dentro fosse o que fosse.
Disse porta?! Não, aquilo era a baliza da Kátia!
- Está tão escuro! Não tens luz em mais lado nenhum?
- Tenho, no teto, mas não chego lá... importa-se de me mudar as lâmpadas?
- Eu?!
- Pois, a senhora. Com esse escadote chega lá. Estão aqui as lâmpadas.
- Eu não mexo em fios elétricos!
- Não são fios, são casquilhos. Só que as lâmpadas estão escondidas dentro do suporte. Pousadas lá dentro, entende?
- Ná! Tens que chamar um técnico para te trocar as lâmpadas. Eu cá não lhes mexo!
Há três fontes de luz no corredor em U: dois candeeiros de mesa, dois apliques de parede, dois plafoniers de teto. Mas as lâmpadas destes fundiram-se há muito tempo. Todas as empregadas se negaram a mudá-las... nem fechadas estão, apenas pousadas nos florões de gesso patinado.
Entretanto, só de novo, lembra-se: Tenho de lhe falar no pano húmido!
Sai da sala, mas encontra a Lutadora a pegar num alguidarzinho com as pontas dos dedos, vinda da cozinha.
Volta, para arrumar a papelada. A sala de jantar parece um sarcófago.
A Kátia devia ter algum Kalifa na família: gerações e gerações de adaptação a tempestades de areia... Limpar o pó?! Pois sim! Via-se por todo o lado, preto a saltar do esbranquiçado, nos móveis, objetos, quadros... Então os quadros!
As suas parentas, no campo, com bichos a entrar e a sair, arcas de trigo e milho e grão e tudo e mais alguma coisa, não tinham assim pó em casa! Lembra-se de não ver pó, só agora se dá conta.
Como fariam? O terreiro era varrido até aos montes de lenha, às furdas, no meio das lages, à volta das pias escavadas na pedra, com água para as galinhas, perus malvados, patos cagões, marrecos barulhentos... e, no verão, regado a regador. Não havia pó.
E esta?! O meu quinto andar parece-se mais com uma tenda no meio do deserto!
Bem, acabou-se a história do aspirador. Vêm mostra-lhe os tubos: um deles não encaixa. Pois não, tem a abertura oval!
E esteve cá o senhor António a arranjá-lo ainda não há três dias!
- É bom, é dos antigos e olha que ainda os fabricam iguais, mas qualquer dia tens de pensar em comprar outro.
- Qualquer dia! Tamanha trancada levou que ficou sem conserto!
E há-de tardar o dia em que possa comprar outro.
Bom, hoje “já conseguiu” arrumar os seus papéis. Vai para a sala de estar e grita para fora:
- Se precisarem de alguma coisa, falem!
E pira-se.
- Mas ó! Olha lá, como queres que eu limpe este tapete sem aspirador?! Há quanto tempo é que isto não é limpo, hãn?
Não ouve nada, já se foi.
Depois, como o tempo passou e passou, diz-lhes:
Bem, hoje os pássaros ainda não estão tratados. Vamos lá, que eu explico-lhes.
A Fulana abre as molas, deixa cair as bases plásticas das gaiolas, atrapalha-se e lá vai Alcina: Apanha a chuva de sementes e excrementos, em cheio na cabeça... Já agora, despeja os tabuleiros, bufando, e dê-me lá um saco de areia para pôr um bocadinho no fundo, está a ver a Senhora?
Vai fazendo o trabalho pesado e a outra vai passando displicentemente a vassoura, caem cascas.
- Lá me estás a sujar tudo!
- Alcina tenta astuciosamente, sem tocar a Fulana que se achega, mudar as gaiolas, prender o fio... e a outra a olhar-lhe as unhas – que arranjara na véspera à noite – como se os seus dedos fossem duchesses com chatilly.
Vai murmurando:
- Eu ainda hoje não te fiz festinhas...
Nenhum pejo diante da Lutadora, apresentada à entrada como irmã anônima.
O cabelo de Alice esvoaça e cola-se-lhe à cara suada
- Hummmmmm, hummmmmm Olha lá, quando é que cortas este cabelo, hein?
- E apanha-o todo, e roça-o com as patas.
Aicina sacode violentamente a cabeça, escapulindo-se-lhe das patorras, da proximidade gulosa.
Estão as duas quase coladas a si, os seus dedos ágeis dão nós.
As duas patorras parecem de lama.
- Uma das Senhoras pode colocar a palma da mão debaixo deste tabuleiro? Desculpe lá, é mesmo só colocar a palma da mão, para eu fechar estas molas. A senhora, D. Fulana, pegue aqui, está a ver? É fácil!
- Vai tagarelando muito para esconder os nervos. Trabalha muito depressa, usa e abusa deliberadamente da palavra Senhora:
- E a senhora D. Fulana sussurrando ao seu ouvido:
- Hoje ainda não te fiz festinhas...
- Depois berra: Lá estás tu a deitar coisas no chão outra vez. Olha lá!
Limpou meia dúzia de gaiolas. O chão fica meio varrido, meio por varrer.
- Está na minha hora, olha lá! Eu cá vou-me embora! Anda lá daí, para não ficar aí esse entulho, vá! Ai, arranjaste aqui uma boa empregada. Fico contigo toda a vida, estás a ver?
- A Senhora é que arranjou uma boa patroa!
- Ai, tens-me aqui para o resto da vida!
E vai de lavar as mãos no lava-louças, e vá de ir mudar de roupa para o quarto do lado, porta aberta, com a acompanhante.
Lá se vão! Alcina escorre suor
-Ai, estás toda vermelhinha!
Enfim, porta fechada nas costas!
Uf!
Já, já, um duche! Ai, águinha, águinha....
Toca o telefone:
- Daqui, Lacoste! Então a senhora não apareceu?!
- Ah, vou já, desculpe, não confio nesta empregada sozinha em casa... Vou já!
Vai já é a despir-se a caminho da casa de banho.
Abre a torneira no máximo, encharca-se a correr, veste a primeira coisa que encontra.
Na Lacoste, desabafa. Tinha de ser, senão rebentava!
E a empregada de balcão passa a tratá-la que nem a um subordinado.
Mas o serviço foi feito e pago e quero mais é que ela vá ver se está naquela esquina!
Volta.
Tem de sair! Há uma semana em casa, não pode mais! Agarra o livro, abre a porta.
Trrrrrrimmmmm! A filha! A filha quer horas de conversa.
- Olha, querida, desculpa lá, queres ir ter comigo à esplanada do McDonald’s? Eu vou. Vou ler para lá, anda!
- Ah, olha, hoje adiei um exame pela primeira vez na minha vida, e....
- Anda lá, faz-te bem!
- Ah, não dá, estás a ver? Tenho de dar banho ao gato, a pele dele, sabes, vou ver se ainda apanho o veterinário.
Estás a ver como é que o Zen fica se o meto na caixa de transporte, não é? O pobre até vai dar saltos! O veterinário vai ficar....
- Olha, desculpa, depois ligo-te. Tenho de sair. Tenho de ir para a rua, se não vens, eu vou. Desculpa, sim?
Ela! Ela a apressar o telefonema da sua desatenta ouvinte palradora acerca de professores chanfrados, Frequências demasiado frequentes, inconstituicionalíssimamente frequentes!.
- Sabes, o pobre do universitário só se tiver razão em tribunal, estás a ver isto?! Vê lá que....
Uf, uf!
No MacDonald's:
Um café e um bolo, 1,50€
Pede um café e um bolo.
- Quanto é? Pergunta.
- O moço fica a olhar para ela, parado. Depois acena para o cartaz com o preço por entre a publicidade, sobre o balcão, em frente da caixa registradora.
- Ai, desculpe, estava distraída.
Senta-se na ponta de uma cadeira, abre o livro.
Está tolhida. Tem consciência do seu ar ridículo. Enfia a cara no livro e vai comendo ao mesmo tempo que aparenta ler.
Chega-se para o espaldar da cadeira aos pouquinhos. Agora um pé fora do sapato, o vestido tapa.
Aos poucos, aos poucos, muito aos poucos, a leitura envolve-a, os nervos desemaranham-se, vai ficando mais natural, mais com ar de gente.
O sol vem.
Puxa a mesa para um canto à sombra. Depois a cadeira.
Está lá ao fundo, ali mesmo, que a sombra é um ângulozito no chão.
Uma mulher sozinha, chávena à frente, inquieta, sem nada, os cotovelos erguidos e as unhas tamborilando umas nas outras, olha-a. Sente-se que está louca por soltar a língua. Até incomoda.
Arre!
A mulher tem-na na mira.
Mas que é isto?!
Ela gosta é de Homens! Bons! Que chatice!
Mergulha acintosamente o focinho na livro. O livro é excelente, fá-la sorrir, fá-la chorar.
Mas não se pode dar ao luxo de levantar os olhos.
Ora esta!
Só uma nota, que não anotei:
No primeiro dia, abanca no sofá, volta-se bem para ela de pernas abertas à homem, que no entanto o vestido tapa e pergunta-lhe de repente, como se perguntasse as horas:
- Olha lá, tu já fumaste?
- Não, nunca fumei. A minha filha é que fuma muito: dois maços por dia. Bem, os filhos... a gente proíbe, depois aconselha, mas crescem e agora....
Põe ponto final ao tormento.
Uf!
A gaja desligou-me o telefone na cara. Deve pensar que me estou a roer de medo. Que me deixou fula, já que sou tão fina que não me podem tratar por tu e que só digo senhora para aqui e para ali...
Ora Toma!
Sente-se outra!
Ai, o ar, o ar a entrar nos pulmões...
É tão bom!