Minificção II
No próximo dia 26 completaria cinco anos que ele estava lá. Depois de um acidente automobilístico no qual a quinta vértebra da sua coluna não foi capaz de absorver o impacto, a fratura o deixou tetraplégico e a pancada na cabeça relegou sua mente a um irreversível estado de dormência, ele estava fadado a viver eternamente na caixa de sonhos.
E, embora a profissão dela exigisse isenção e coração duro, e ela, como era sabido por todos, ser extremamente profissional e impassível, aquele paciente, fazia-a esquecer do juramento.
- Em coma e tetraplégico. Isso não é vida!
Ela repetia isso quase todo dia, não importava o lugar, nem a quem. Apesar de todos no Hospital saberem da sua indignação com o destino e da sua queixa com Deus pelo estado daquele paciente, as palavras dela fazia eco pelos corredores.
Todavia, naquele Hospital, poucos sabiam que há um lugar na alma humana onde estão os ouvidos e os olhos internos.Poucos, porque afinal, isso não se aprende nas faculdades de medicina, mas já nasce com a gente, mesmo não podendo ser detectado em algum desses aparelhos de diagnóstico por imagem, existe. É lá onde falamos conosco e nos reconhecemos. É a alma em estado puro.
Ocorre que no dia do aniversário de cinco anos da internação daquele paciente, nada mudou no protocolo: comida pela sonda, troca de fralda e banho com lenços umedecidos. Bem como nada mudou no paciente: sem movimento, sem reação, músculo involuntário batendo e sacos se enchendo com a ajuda de aparelhos. No entanto, dentro dela, lá naquele canto que a gente sabe que existe, havia uma luz.
Naquele dia, completaria cinco anos que ele estava preso no seu próprio corpo. Naquele dia 26, ela fez dele um homem livre. Naquele dia, a liberdade acendeu dentro dela e ninguém ouviu o ruído dos seus reclames.