COMO SE ARRANCA UM DENTE

COMO SE ARRANCA UM DENTE

{{(extraído do livro TOCAIA GRANDE

de JORGE AMADO, páginas 70 e 71.)}}

- Dispenso. - Ao lado da mulher, segurava a repetição, impassível.

Castor não se deu por achado.

- Dispensa? Não gosta, ou é crente? A moça é que não pode dispensar, goste ou não goste.

Pela forma como tomou a garrafa, logo se viu que Clarinda não recusava um trago. Parou até de gemer.

- Agora, abra a boca, dona. O fifó Coroca!

Apalpou as gengivas da queixosa que se remexia a cada toque de mão incômoda. No silêncio espesso e tenso, uma atmosfera de alarme e apreensão envolvia os presentes, atentos a cada palavra, a cada gesto. A velha tirou a garrafa da mão da filha, serviu-se ela também. Tição riu e comentou.

- Que é isso, vovó? Também vai arrancar dente? Segure aí. – Entregou-lhe a torquês, voltou-se para o malcriado: - Me empreste o punhal, seu Manuel.

- Para quê?

- Já vai ver. Preciso afastar a gengiva para poder segurar o dente com a torquês.

Recebeu a arma, receitou outro gole de cachaça para Clorinda.

- Assim, ela vai ficar bêbada. – Alarmou-se a velha.

- Quanto mais bêbada melhor pra ela.

Pedro Cigano comprovou e louvou, com um movimento de cabeça, o desembaraço da chorona: emborcara a garrafa com disposição.

- Se prepare que vai doer um pouquinho. – Avisou Castor.

- Pior do que está não pode ser. – A cachaça, se não a embriagara, dera-lhe coragem.

Pedindo a Coroca para movimentar o candeeiro de forma que pudesse ver dentro da boca aberta, o negro separou a gengiva do dente, pouco a pouco, com a ponta do punhal. Manuel Bernardes desviou a vista, olhou em frente. Além dos gemidos abafados, não se ouvia o menor ruído. Clorinda, de quando em quando, se agitava ao sentir a picada da lambedeira.

- Pronto! – Comunicou Castor. – Passe a garrafa para ela, vovó.

Devolveu o punhal. Manuel Bernardes limpou o sangue na calça caqui. Tição esperou que a mulher terminasse de beber, fê-la escancarar a boca, ainda assim teve dificuldades para introduzir a torquês. Não foi fácil tampouco segurar o queixal entre as tenazes: apesar da delicadeza e da habilidade demonstrada pelo ferrador de animais, a torquês mordeu duas ou três vezes a gengiva machucada, fazendo Clorinda contorcer-se. Aproveitando um momento que o negro retirara a torquês para afastar a gengiva com os dedos, a mulher deu um safanão e levantou-se de um salto. Sem sequer olhar para ela, Manuel Bernardes disse:

- Tu quis, agora tem de aguentar, o moço avisou. Vai, sente e não se levante mais.

Era uma ordem transmitida com brandura, a voz não se elevara, jamais se elevava ao falar com Clorinda. O sarará estava embeiçado, refletiu Bernarda e se preocupou por Tição: se o negro estragasse a boca da mulher e não tirasse o dente, iriam presenciar mais uma desgraça. Olhou em derredor e leu na cara dos demais a mesma agonia, ai, minha Virgem da Capistola!

A mulher se aquietou e Tição conseguiu finalmente prender o molar entre as garras da torquês. Fincou os pés no chão, deu um arrancão com violência, mas a paciente se moveu, o dente resistiu, não veio com a ferramenta. O negro, paciente, recomeçou a melindrosa tarefa, minutos infindáveis. Os assistentes se comprimiram entorno. Alguém, talvez Bernarda, deixou escapar um suspiro. A voz, agora alterada e dura de Manuel Bernardes, exigiu:

- Acabe com isso de vez!

Castor sorriu à luz do fifó e prosseguiu tranquilo, até sentir o dente bem agarrado pelas tenazes que o seguravam na raiz. Pediu ajuda de dois homens para imobilizar Clorinda, impedindo-a de se mexer. Antes que alguém se apresentasse, Manuel Bernardes decidiu:

- Não precisa ninguém, basta com eu.

Encostou a espingarda nos sacos de cacau, cravou as duas mãos no cangote da mulher. Então o negro fincou o corpo, puxou com toda força: a força de um ferreiro habituado a aplicar ferraduras em animais, a malhar o ferro em brasas. A torquês saiu suja de sangue, Castor a exibiu com o queixal entre as tenazes, um dente disforme que dava gosto.

Aleixenko
Enviado por Aleixenko em 19/05/2012
Reeditado em 19/05/2012
Código do texto: T3676333
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