Viagem inesquecível

O mundo vai acabar em 2000. É o bug do milênio. É tempo de arrependimento e recato, ouvia-se por toda a parte.

Mas elas não estavam nem aí, queriam emoção nova, nada a ver com o fim do mundo. Queriam receber o novo ano em um novo lugar. Chega de réveillon japonês, lugares comuns, as mesmas pessoas conhecidas e reconhecidas, as mesmas músicas, os mesmos passos.

Elas eram sete mulheres prontas para uma experiência nova: Carly, Sônia Pinto, Wilde Meneses, Vera Luna, Solange Lamego, Sônia Gadelha e Maribel. Não estavam fugindo de nada, nenhuma dor de cotovelo ou qualquer outro tipo de dor, aliás, nada doía. Contas estavam pagas, família abastecida, saudável, nada para atrapalhar a alegria, que esperavam ser total. Dos afetos, levavam as fotos de filhos(as), netos(as) e alguns amigos(as), que não tiveram oportunidade de se juntarem a elas.

Mas futucava o desejo de estarem juntas, ver e viver o réveillon do Rio de Janeiro. Traziam para esse momento diferentes experiências de vida, todas eram mães, já tinham sido casadas, três eram viúvas, quatro eram avós, duas delas tinham longas experiências de viagem, outras tinham vasto currículo afetivo, outras, nem tanto. Mas a vida sorria para elas e elas lhe sorriam gostosamente.

Providências operacionais foram deflagradas por Sonha Pinto, utilizando sua ampla rede afetiva, Raimundo Leal resolveu a hospedagem. Compraram ingressos para festa no Othon Palace, passagens aéreas etc., chic mesmo!

Alugaram um apê típico quarto/sala/banheiro/cozinha americana em Copacabana, Rua Constante Ramos, entre a Barata Ribeiro e Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Wilde Meneses e Vera Luna ficaram com Carly, já hospedada em casa da irmã Nancy.

Falar deste apê dá saudade, dizem suas ocupantes. No quarto de casal, Sônia Gadelha e Maribel e nem eram um casal, mas gostavam de mais conforto e de ar condicionado. Sônia Pinto se instalou paralelamente a uma estante divisória, onde colocou as fotos de família. Solange Lamego preferiu um vão diante de uma pequena janela, onde montou o seu armário de roupas, não se importava que passassem por cima dela a caminho do banheiro, tudo estava bem, estavam no RIO. E o banheiro era um festival de calcinhas.

Ah! Quantas risadas! Riam ao sair do apê e descer uma escadinha que dava acesso à Avenida Barata Ribeiro e que encurtava o caminho, depois de muitos saltos sobre poças de mijo, para a praia de Copacabana, calçadão, água de coco, brisa carioca, visitas à família de Carly, Botafogo, Flamengo. Vera Luna esticada na praia, na paquera, dança no bar da Lapa, reduto da boemia carioca.

Cristo Redentor e Pão de Açúcar, sempre renovada emoção. O Rio se veste de beleza nessa época do ano para receber imensa onda de turistas em busca do ideário de alegria que a cidade traz. E a Natureza não economiza, é abundância para onde o olhar se volta. Beleza de gente e de lugares!

Dezembro, 31. Copacabana está lotada preparada para um espetáculo único. Elas também. Vestidos novos, lindos, coloridos, não precisam ser brancos, não estão na Bahia. O apê agora era a casa das sete mulheres, ponto de encontro e de preparação ao glamour: maquiagem, cabelo, perfume e os últimos retoques em seus costumes, todos comprados para os momentos no Rio. Mas tinham que descer a escadinha do mijo. Saias na mão, olhos nos degraus e muiiiiiiiita risada, chegaram à Avenida Atlântica sãs, salvas e limpas.

Os fogos de Copacabana!!! Estavam bem pertinho e assistiram a tudo com olhos arregalados e avermelhados pela fumaça, Wilde fez uma prece e as mãos se juntaram em agradecimento. Que o novo ano as conserve íntegras, felizes, e o mundo em PAZ. A festa decepcionou um pouco, mas a alegria delas era maior, não seria a falta de animação dos outros convidados que iria atrapalhar, e elas riam.

Não circulam táxis em Copacabana nessa noite e elas estavam quase na outra ponta do Rio Othon Palace Hotel, na Avenida Atlântica. Foram andando, então. Pés doloridos, vestidos já amarrotados, e quilômetros para andar. Sônia Gadelha tem pernas curtas e Maribel não é chegada a um passo largo. E a escadinha as esperava em clima de final de festa. Meu deus! Tapem o nariz. Pequeno estresse, resolvido mais tarde, com risadas.

A saudade da Bahia é reduzida porque descobriram um grande e lindo barco de presentes para Iemanjá, justamente no prédio onde moravam os Marinho, big boss da rede Globo. Mas também morava Abílio Diniz, patrono da Beija-Flor. VIVA A DEMOCRACIA!!!!

Elas também queriam curtir uma escola de samba, afinal era a temporada dos ensaios pré-carnavalescos. Quem tem amigos, tem tudo e elas foram convidadas por Roberto e Nancy, irmã de Carly, e o amigo Raimundo Leal, para os ensaios da Mangueira e da Beija-Flor. GLÓRIA Suprema!

Foram de Kombi sambar na Mangueira, tratamento Vip, conheceram a cortesia e a grandeza do morro. Quadra imensa, lindas mulheres, passistas e ritmistas, mistura de todas as cores, credos e idades. É o Brasil profundo cantando o seu samba Dom Obá ll, Rei dos Esfarrapados, Príncipe do Povo. 500 anos de Brasil.

Essa gentileza também está presente na Barra da Tijuca. Sônia Pinto e Solange Lamego passaram o primeiro dia do ano na casa desse casal, quando Sônia Gadelha teve pequeno problema de saúde, mas a recepção foi muito calorosa. O mesmo calor humano Sônia Gadelha encontrou em seus parentes na zona norte, ao visitá-los.

No ensaio da Beija, elas foram acompanhadas pelo anfitrião e aí a mordomia tinha nome e endereço, comidas e bebidas de graça, atenção de outros membros da diretoria da escola, Neguinho da Beija-Flor no palco, disponível para fotos e o samba-enredo 2000 da Beija-Flor:

Um coração que pulsa forte, Pátria de todos ou Terra de ninguém

Luz celestial que ilumina

Astros abrem a porta divina

Guiando a navegação

Descobrindo esta nova nação

Semente de uma nova era

Paraíso de belezas naturais

Índios guerreiros de pele dourada

E alma purificada

Habitavam este solo colossal

Corsários e aventureiros

Invadem Cruzeiro pela ambição

Lutaram e colonizaram

A pátria de todos os povos então

E o negro aqui chegou... chegou

O seu canto de fé ecoou... ecoou

Liberdade pra ser feliz... feliz

O braço forte que ergueu nosso país

Assim

São Vicente veio a encantar (obá, obá)

Berço da democracia

A primeira cidade do Brasil

Meu Rio, eu sonhei!

Que o Senhor havia nos dado a mão

Que havia ordem, progresso e perdão

E um ser de luz a iluminar

E hoje eu canto

Ó pátria amada! Me envolvo em seu manto

Por essa terra sem dono, sem leis

Pra ver o sonho que sonhei

Me abraça amor com seu calor

Faz pulsar meu coração

Sou Beija-flor e trago a paz

Nos olhos da geração.

Elas cantaram, dançaram, aplaudiram, se emocionaram tanto que Sônia Pinto torceu o pé. Ambulância a postos, socorro imediato nos braços de um herói da Escola. Mas elas continuaram a sambar até o finalzinho e queriam ficar no lixo conversando, mas lá era diferente. Acabou o ensaio, o povo se retira rápido e o anfitrião as enfiou literalmente no carro. Problema, Sônia Pinto era a motorista do carro do primo, sobrou para Solange Lamego dirigir por local estranho e escuro seguindo o carro do integrante da escola que não sinalizava, não reduzia em cruzamentos, e para Santo Antônio, responsável pela proteção dessas mulheres animadas e contentes por realizarem velho sonho!

E elas cantavam o samba-enredo à plena voz, até mesmo na viagem de volta a Salvador. - Esta viagem está em nossos corações e é com emoção que nos lembramos dela, diz Wilde.

As sete mulheres continuam amigas e rindo de prazer da vida e de terem em comum a memória afetiva de um réveillon no Rio de Janeiro, que agora compartilham.

Esta história foi originalmente escrita por Solange Lamego, contando com as memórias de Sônia Gadelha e de Wilde Meneses. Foi repassada por Wilde, minha cunhada, que me autorizou a recontá-la.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 18/05/2012
Reeditado em 08/05/2020
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