Maria Antonieta

Conheci Maria Antonieta, dona Marieta, pedindo esmola em frente à Igreja Matriz de São Francisco das Chagas, da cidade de Canindé, distante 108 km de Fortaleza. Senhora aparentando mais de 65 anos, cuja vaidade não a deixou revelar-me sua verdadeira idade. Residente da cidade há pouco tempo, mas que sempre vivera na zona rural, plantando, em seu pequeno pedaço de terra, milho, feijão e mandioca, quando as chuvas assim a permitiam e cuidando de algumas cabritinhas, batizadas com nomes de pessoas de sua intimidade, e que sustentara com leite durante os primeiros anos de suas vidas, os 11 filhos que tivera. Ela revela que nunca teve leite para amamentar as crianças, possivelmente pela péssima nutrição que ela própria experimentava, à base de feijão e milho, quando a safra dava para isso e farinha de mandioca, que ela e o marido produziam no próprio sítio. Carne, só quando algum animal que eles criavam envelhecia, sem serventia alguma. O animal era sacrificado, salgado, posto ao sol e, dependendo do porte desse animal teriam proteína animal por alguns meses, sempre misturada ao feijão, cozido em panela de barro, tendo como fonte de calor gravetos de arbustos apanhados entre a vegetação seca da caatinga.

A cidade de Canindé encontra-se encravada na região de sertão do Ceará, que apresenta níveis de pluviosidade extremamente irregulares e paisagem clássica do semi-árido, existindo apenas duas estações: o inverno, entre os meses de janeiro a junho e o verão, resultando estiagens que deixa sua população rural a mercê da ajuda governamental, pelo fornecimento de água potável, quase sempre irregular.

Nessas condições viveu dona Marieta até a morte do marido, quando foi obrigada a abandonar tudo, se desfazendo do que tinha por míseros trocados. Sem os filhos, sete dos quais não sobreviveram os primeiros anos de vida, assim Deus o quis, diz ela, e os quatro sobreviventes deixaram a casa cedo, indo para São Paulo, para trabalhar. Estes ela nunca mais os viu nem tem contato há mais de 40 anos, não sabe nem se estão vivos.

Agora ela vaga pela cidade que tem como característica, o recebimento de muitos turistas-peregrinos que, segundo ela, para pagarem as graças alcançadas são muitas vezes generosos, distribuindo dinheiro entre os pedintes postados nas imediações da Matriz. Quando isso acontece, muitos se aglomeram ao redor do pagador de promessa, de forma desorganizada, impedindo, por problemas de articulação nos membros inferiores, que ela seja agraciada com o mimo do peregrino. Se a sorte lhe sorrir, diz ela, e essa pessoa passar primeiro pelo local que costuma ficar, na escada da Matriz, portão lateral direito, suas preces são atendidas e sempre com a mão direita estendida recebe com bom grado a oferenda.

Marieta, ela me permitiu chamá-la assim, apesar do sofrimento e das dificuldades que a vida lhe reservou, é uma pessoa tranquila e simpática. Sempre com um sorriso nos lábios respondia a todas as perguntas que eu lhe fazia. Às vezes soltava aquela gargalhada, principalmente quando respondia com palavras cheias de malícia, picantes, como os apelidos que colocava nas pessoas. Tinha o Zé Pé de Priquito, que ela não soube definir sua origem; o Augusto Pomba Leve, por ser muito magro Marieta dizia que seu falo flutuava durante a relação sexual; tinha também o Fiofó Furado, dado a um homossexual muito conhecido da garotada local. Algumas mulheres também tinham seus apelidos, uma mulher de idade um pouco avançada que teimava em permanecer na zona, ela apelidou de Marilda Perereca Madura. Tinha também a Maria Caneco Furado, também prostituta e muito visitada pelos bêbados da cidade. Cada apelido anunciado ela se dobrava em risadas, ia ao delírio. Eu tinha que esperá-la retornar de sua desorientação espaciotemporal, para podermos continuar nossa conversa.

Marieta, apesar da quantidade de filhos que tivera, nunca se casara. Perguntada se isso não constituía pecado, ela respondeu que não, pois sempre vivera com o mesmo homem e nunca o traíra. O próprio padre da Basílica lhe havia garantido que não. Nunca fora dada ao desfrute, nem mesmo depois de viúva. E olhe que não lhe faltaram propostas indecorosas. Ela sempre aguentou firme, só tinha uma queda por um dos padres daquela Igreja. Mas como ele era muito dedicado à igreja, jamais confessou seus desejos para o sacerdote.

A missa já havia começado e os peregrinos e fiéis locais já se encontravam todos lá dentro. O templo estava cheio, não cabia mais ninguém, foi então que ela me perguntou porque eu não ia assistir a missa. Disse-lhe que estava apreciando muito a nossa conversa e preferia ficar para saber sobre a vida dela. Outra gargalhada explodiu de suas cordas vocais. Perguntei-lhe, espantado sobre aquilo. Ela, bastante séria, falou:

- Eu não tenho vida que interesse ao senhor. Nem mesmo para mim ela é interessante, como é que ela vai servir para o senhor? Sempre vivi com sacrifício, muita luta para nada. Não tenho nada na vida, só este céu que me cobre a cabeça e um cantinho para dormir debaixo daquela marquise. O de comer eu ganho das pessoas que têm pena de mim. Também recebo roupas, como essa que estou vestida, dessas pessoas. O dinheiro que ganho pedindo esmola é sempre para comprar remédio, para acalmar as minhas dores e para, vez por outra, comer pastel com caldo de cana.

A missa estava chegando ao seu final. Confessei-lhe que estava ali acompanhando a minha esposa que veio pagar uma promessa. Morávamos em Fortaleza e iríamos retornar em seguida. Aproximei-me dela por ter achado uma figura bastante interessante e que merecia ter sua história participando de minha mais recente mania; escrever contos sobre personagens do meu cotidiano. Eu esperava que ela me autorizasse passar sua história para meus leitores. Com sua concordância, aqui estou falando de dona Marieta e nosso encontro. Espero que vocês gostem.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 18/05/2012
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