Allez, Allez, Allez Júlia!
Hoje eu acordei decidido a nunca mais tentar largar o cigarro.
Decidi alugar uma casa e deixar a barba crescer. Decidi decidir. Comprei um gato cinza e um frigobar usado. Viva a liberdade! Acordar, se banhar, trabalhar, transar, amar, ODIAR. Fui ao mercado que havia próximo à minha nova casa e, com uns poucos trocados, comprei cerveja e cigarro pro resto do dia; comemorei solitário minha solidão. Arrumei a bagunça da mudança e, de bicicleta, fui até a casa dum cara que se chamava Franklin e peguei o equivalente a três baseados, ou finos. Três finos. Fumei um, voltei para casa e descobri que a vida não vale mesmo nada. Descobri que a felicidade é uma virtude dos artistas. Brinquei com o gato por duas horas inteiras sentado no chão da varanda de frente com uma rua pouco movimentada. Havia umas flores num canteiro no limiar da casa. Achei as flores maravilhosas, verdadeiras, vivas, diferentes de mim. Dos humanos. De tudo que pensa. O dia estava acabando junto com a cerveja e no poente se podia ver o amarelo-alaranjado do sol que desaparecia. Eu amava estar vivo e ensejar a morte; ficava pensando no quão milagroso é viver a esmo no espaço vazio... Sem ter o que fazer liguei a televisão e fiz o que há muito almejava: Quebrei-a. Desferi um belo chute e ela caiu no chão, impotente, destroçada, terrificada. Dormi no chão da sala, acabado, depressivo, bêbado, vivo. Acordei umas onzes horas da noite e o Chico – meu gato – estava dormindo em minhas costas desnudas. Ele acordou pouco depois, veio até meus olhos e permanceu um tempo neles, me lhando, misterioso, faminto. Chorei por quinze minutos seguidos e coloquei um pouco de comida pra nós dois. Descobri que ração não é tão ruim como nos fazem acreditar. Eu sentia que precisava de uma espécie de ajuda externa. Já havia um tempo que eu não conseguia perceber a beleza do mundo. Tudo estava empedrado, asfaltado, respaldado, pavimentado.
Quando, meia noite, o Chico dormiu, saí de mansinho e vesti uma flanela verde e uma calça jens surrada da qual me orgulhava muito e coloquei uma nota no bolso e saí de encontro com a movimentada cidade que agora me acolhia em sua noite pouco estrelada. Começou a chover. Me molhei, me resfriei, chorei, me entorpeci e por fim encontrei um bar que a muito eu não comparecia.
Lugar pouco convidativo com suas paredes amareladas e descascadas e balcão de madeira velha comportando cinzeiros e camisinhas vermelhas da Brahma e nas paredes banners de tempos passados pendurados por todo o lugar; teto mofado, duas mesas de sinuca, uma juicebox, uma mulher com seus quarenta e poucos anos num canto, atrás do balcão, somando algumas contas num caderno pequeno, o dono, velho Inácio, no outro canto com a cabeça inclinada vendo TV.
Eu conhecia algumas pessoas que estavam ali, jogando sinuca e sorrindo e discutindo qualquer coisa sobre vagina e seios e cerveja e futebol e então fingi não vê-los e fui até o balcão e me sentei. Pedi Montila com Coca e bebi dois ou três copos e saí sem que ninguém pudesse me ver, apesar de muito vagamente ter ouvido meu nome.
Quando cheguei até a esquina e pensei estar perdido, desorientado e sem condição de continuar, dei meia volta e segui novamente ao bar do Inácio. Eu disse estas belas palavras, vacilante: “Seu Osvaldo, eu quero... Eu quero outra Montilla com Coca num copo descartável e... E um cartão telefônico normal mesmo, não precisa ser descartável”. Ele disse: “Seu Osvaldo?” e começou a rir como alguém que há muito não praticava este exercício.
Voltei para rua escura segurando o copo e o cartão e procurei durante um tempo não muito curto um orelhão. Achei um coincidentemente na esquina da minha nova casa. Alguns carros passavam e diminuiam a velocidade para me observarem - já que não era raro os tombos que eu vinha caindo havia algum tempo -, como se sentissem uma intensa comiseração e se sentissem, principalmente os mais velhos, na obrigação de fazerem qualquer coisa por mim já que estavam de carro. Porém, com o pouco de percepção que me sobrava, eu sabia que eles queriam mesmo era me ludibriar e ter história para contar às outras pessoas que faziam parte de seus ciclos de convivência.
Com dificuldade me aproximei do orelhão e disquei, decidido, alguns números e minha ex-namorada atendeu prontamente.
“Alô” ela disse.
“Alô, Júlia?”, perguntei.
“Sim... É você...”
“Sim Júlia, sou eu. Eu só...”
“Olha Edgard, são quatro da manhã e eu tenho mais o que fazer”, ela disse.
Bebi um pouco da Montilla e arrotei alto respondendo em voz baixa, quase inaudível :
“Eu só queria te dizer que descobri uma pessoa maravilhosa... Aliás, duas pessoas maravilhosas cuja compainha é muita mais aprazível do que a sua... Paris, Paris... Viva Paris Júlia, viva!”
“Tudo bem Edgard! Desejo à você toda a felicidade, mas agora, se me permite, vou voltar para minha África selvagem e deixar você com sua Parasiense”.
Desliguei o telefone e fui embora com meu copo de Montilla e minhas baforadas.
Chico, lindo Chico, me esperava deitado na varanda, melancólico, sonolento, nostalgico. Abri a porta pensando nela. Eu contava os segundos para poder tocá-la. Ouvi-la. Tê-la. Liguei o computador e deixei Camille cantar para mim, aos sussurros. Sim, naquele momento Camille Dalmais cantaria para mim. Deitei novamente sobre o chão; Chico se aproximou e deitou ao meu lado; Camille aumentou a intensidade de sua voz e a chuva tornou a cair.
Allez, Allez, Allez Júlia. Agora tenho Camille, cerveja e até um gato.