Vida sem Vida
Muito cedo, papai Silvio e mamãe Bela me deixaram. Morreram de acidente quando voltavam da nossa casa de praia em Angra dos Reis.
Até então, com oito anos, ainda não sabia bem o que significava a "morte". Diziam "que Papai do Céu levava a gente pra morar com ele num lugar muito bonito, cheio de flores e paz total".
Como era criança, fiquei sob os cuidados de minha avó paterna Isa, uma mulher segura em suas atitudes, habilidosa e rígida nos momentos certos e que não permitia que nada atrapalhasse seus planos aos cinqüenta e cinco anos.
Criou-me convicta de que todas as suas qualidades seriam minhas, também. Quanto ao amor, dedicação sempre, dia e noite. Ainda me lembro de ouvir mamãe Bela dizer "Nossa, sua avó não pára, que mulher dinâmica, gosta de passear, conversa sobre tudo e ainda está fazendo faculdade. Ah! Como eu gostaria que você, Isabela, fosse igualzinha a ela. Sabe, minha filha, quando você nasceu, sentia-me ansiosa e insegura, mas dona Isa aparecia sempre cheia de afeto e cuidado e pronto ... tudo se resolvia. Quanta fortaleza!"
Cresci, apostando que mamãe tinha razão.
Ao completar treze anos, vovó fez questão de fazer um bolo bem grande, lindo!
Convidou todos os amigos e, inclusive, vovó materna Nini, que por ser muito religiosa, presenteou-me com a imagem de Santa Terezinha e uma agenda belíssima, na qual escrevo todas às noites. Mas, eu não era feliz!
Sofria muito com saudades dos meus pais e o que mais me impressionava eram as atitudes de vó Isa que não transparecia sentir falta do filho. Parecia-me distante, fria, mas irradiando sempre felicidade.
Às vezes, em meu quarto pensava "Por que ela nunca falava sobre papai e mamãe? Por que não chorava pra me fazer companhia? Que mulher feita de pedra! Por que não conversava comigo?"
Enfim, vovó não tinha tempo pra mim. Só sabia dizer que me amava ...
A vida seguia normal pra todo mundo, menos pra mim, que cheia de inseguranças e um tanto de arrogância, achava o mundo muito injusto.
Tornei-me uma moça bonita, assediada ... os namorados, vários, mas nada sério, pois com vinte anos, sentia-me sufocada, sem vontade própria, jovem insegura, por ser tratada como se fosse uma criancinha,que não conseguia caminhar com as próprias pernas. Resolvendo tudo do modo como vó Isa achava certo. E, eu, só aceitando. Por que não reagia? Por amor a ela? Covardia!
Ela sempre me dizia que eu não precisava de NADA! Ah! Engano ... Precisava de TUDO!
No aniversário de setenta anos de vó Ni, fui abraçá-la, pois havia tempo que não nos encontrávamos. Porém, percebi muita tristeza em seu olhar.
- Vó, o que você tem?
- Nada, Isabela, só estou um pouco cansada de tudo.
- Você sente saudades da minha mãe?
- Claro, querida, e você também me faz muita falta. Mas cada um tem sua vida e a Isa cuida muito bem de tudo ...e de você.
- Sabe, vó, eu não sou feliz.
- Por quê?
- A vó Isa é um amor, mas não me deixa viver, falar do que eu gosto, dos meus sentimentos ... Não fala dos meus pais, não sofre como eu ...
Percebi que vó Ni estava com os olhos cheios de lágrimas.
- Ora, Isabela, esse é o jeito dela, minha neta. Quem sabe se você falar com carinho ... ela é forte, agora, eu, aqui no meu canto, espero a hora em que Deus virá me buscar ...
- Ô, vó! Não fica assim ...
Abracei-a bem forte ... emocionada.
As palavras dela não me saíram da cabeça. Será que poderia ajudá-la, mas como? Era uma senhora de bom coração, calma, sensata, a qual eu não tinha muito convívio e que se entregou a própria sorte depois que perdeu a filha.
Decidi ter uma conversa séria, procurando ajuda com vó Isa. Afinal, as duas eram a família que me restava e, naquele momento, o meu objetivo maior era resgatar a auto-estima de vó Ni, tão castigada, magoada pelo mundo e ao mesmo tempo, dividir minha dor que era também muito grande.
Acordei mais cedo e vó Isa já estava terminando o café.
- Vó, queria conversar com você! É importante!
- Desculpa, querida, combinei com umas colegas da faculdade de encontrá-las na biblioteca.
- Como sempre, não é, você nunca tem tempo! - falei muito irritada.
- Amanhã, querida, amanhã ... Agora, minha neta linda, cuidado para não perder o horário da aula. Amo você ... até ... beijos ...
Fiquei pensando, pensando ... Será que se eu fosse criada pela vó Ni, tudo seria diferente ...
No dia seguinte, fui visitá-la. Vó Ni estava só, sentadinha, quietinha, olhando o nada ...
- Vó, como você está?
- Oi, querida, tudo bem! E você?
- Vou ficar bem, ajudando você.
- Ô filha! Você tem sua vida, faculdade, juventude ... Não deve se preocupar com uma velha chata e cansada como eu ...
- Posso passar uns dias com você?
- Claro! Mas fale com Isa. Se ela não se incomodar, ficarei feliz.
Pela primeira vez, senti-me útil! Quem sabe esta não seria a chance de que eu tanto precisava para virar este jogo, o qual sempre me vi perdedora.
À princípio, vó Isa fez uma carinha de ciúme diante do meu pedido, mas o que um beijinho e um pouco de carinho não resolvem ...
Passei as férias da faculdade de Psicologia em companhia de vó Ni. Ah! Que momentos felizes, ouvindo aquela mulher carente de atenção e eu também, contar-me histórias da sua juventude, peraltices, namoro, casamento perfeito e principalmente, com um sorriso nos olhos, falar da minha infância que apesar de breve ao lado de meus pais, deixou-me muitas saudades.
Que troca de experiências! Enquanto conversávamos, parecíamos da mesma idade, vivendo situações quase que idênticas. O tempo passava tão rápido que à janela, juntas, víamos à noite chegar, trazendo uma chuvinha fininha e fria, mas gostosa, temperando um chocolate delicioso com torradas. Assim, vi minha vó nascer de novo.
Alguns meses depois, conheci as duas faces da moeda. De um lado, vó Ni, vivida, viva, vivendo; entretanto, vó Isa, tornou-se muito frágil, insegura, morrendo ... porque sempre sofreu de solidão, aparentando vida ..., preocupada com a minha felicidade. Abriu mão de sua personalidade ... fugia da dor, quando estávamos juntas ... Mas ainda há tempo de ajudá-la para compensarmos o passado.
Passado esse, de uma grande história descrita na minha primeira agenda aos pés da imagem de Santa Terezinha.