Conversa com o falecido bisavô
Realmente prazeroso. Momentos como aquele justificavam toda uma existência, assim pensava Renato, deitado no tapete de folhas secas, cabeça apoiada nas mãos. Olhava para cima e contemplava a copa formada pelo pomar de mangueiras, “os pés de manga”, como todos estavam habituados a chamar. Não importa se fosse verão e o calor estivesse abrasador, ali embaixo era sempre fresco, não trocava aquele momento por nada na sua jovem vida. Como um adolescente do século XXI adorava todas as modernidades desta época, mas desde criança algo o atraia naquele gigantesco pomar, com 20 mangueiras crescendo muito próximas umas das outras, formando uma visão magnífica. Era verde o ano inteiro.
Gostava de passar os finais de semana na casa de seu avô, “Pai Francisco”, como se habituou a chamar desde pequeno, e nos sábados à tarde, dirigia-se para o maravilhoso pomar, plantado próximo à grande residência, apenas para ficar deitado e sentir o cheiro doce de manga, escutar a água correndo nas grotas, ouvir os pássaros cantar, contemplar os isolados raios de sol que conseguiam ultrapassar as folhas. Fechava os olhos e fingia viver no tempo de seu bisavô, homem que havia plantado todas aquelas árvores e zelara por elas, trabalho mantido pelo seu avô, e hoje proporcionam uma visão fantástica para a pequena cidade. Visão inconfundível de qualquer ponto. O chão, forrado por um tapete de folhas secas marrons, permitia perceber se alguém ou alguma coisa se aproximasse sorrateiramente, mas não viu a cobra coral quando se deitou, e não percebeu quando ela ficou eriçada, pronta para um bote que atingir-lhe-ia o pescoço e poriam fim na sua breve existência de 15 anos.
Ao preparar o bote, o animal empacou, um homem idoso, de pé, do lado esquerdo do jovem a afastou apenas com o olhar, o animal se pôs a rastejar para longe. Foi com surpresa que Renato o viu ali parado a olhar-lhe, mas não se assustou.
- Desde quando o senhor está aí? – perguntou o menino.
- Acabei de chegar – respondeu o idoso.
- Não o ouvi – disse Renato ainda deitado e sem demonstrar preocupação.
- Tenho passos leves.
Renato o olhou, o idoso tinha cabelos brancos e uma curta barba, a pele era marcada pelo sol, parecia-se muito com alguém que trabalhava na lavoura, sua expressão facial era bondosa, usava uma camisa branca, bastante gasta e uma calça tipo social de cor cinza, também gasta. Calçava chinelos de couro.
- O senhor vem sempre aqui? Nunca o vi antes.
- Sempre que me é permitido. Não posso vir toda vez que tenho vontade.
- Essas terras são do meu avô, ele cuida de tudo isso.
- E você parece gostar bastante desse lugar, para vir sempre aqui e se deitar no chão sem preocupações.
- Sim eu gosto muito, essas árvores foram plantadas pelo meu bisavô que não conheci. Ele morreu bem antes de eu nascer. Mas sinto muito orgulho de ser bisneto dele, ainda hoje escuto as pessoas falarem coisas boas sobre ele. O senhor já ouviu falar dele?
Com uma risada o velho respondeu que sim.
- Ele teve uma vida de muito sofrimento, trabalhar na roça é algo muito difícil, cansativo, as pessoas envelhecem cedo, mas ele gostou da vida que teve e ficou orgulhoso da descendência que deixou, dos filhos, netos e bisnetos – completou o homem idoso.
Renato o olhou fixamente. “Ele fala como se o conhecesse muito bem”, pensou.
- O nome dele era Joaquim, “Seu Joaquim” como todos o chamavam. Além desse pomar também tinha um pequeno engenho, e uma casa de farinha de mandioca.
- Era um homem que gostava de trabalhar – disse o velho – assim como o filho.
- Acho que eu tenho de ir, alguns amigos esperam por mim – disse o menino.
- Também já está na minha hora – respondeu o idoso.
Quando estava saindo, Renato virou-se para o idoso que também já estava de costas caminhando.
- Qual o seu nome, senhor?
- Meu nome é Joaquim, Renato – respondeu.
“Estranho o nome do meu bisavô, além de haver uma certa semelhança entre ele e meu avô”, pensou. Sorriu consigo mesmo por um minuto. Foi em direção a grande casa da família. “Espere, eu não disse meu nome”, lembrou-se. Mas quando virou já não o viu mais. Sentado em uma cadeira de couro na varanda da grande casa estava seu avô Francisco, olhando o tempo.
- E o que fez hoje? – perguntou ao neto.
- O de sempre, fiquei deitado nas folhas secas.
- Tome cuidado, há cobras por aí, sempre lhe digo isso.
- Nunca vi nenhuma – respondeu o menino -, mas dessa vez apareceu um homem idoso, conversou um pouco comigo, era incrivelmente parecido com o senhor, se chamava Joaquim e até sabia meu nome.
Que coincidência não é? Muito estranho também.
- Bem, é uma coincidência muito grande.
O neto entrou na grande casa antiga.
- Muito educado esse meu bisneto. Fico orgulhoso da minha descendência – disse o homem idoso de há pouco assim que surgiu na varanda.
- É sim – respondeu “Seu Francisco” – todos o amamos muito. Ele ficou desconfiado, pai. Talvez um dia ele entenda.
- Se isso acontecer virei visitá-lo novamente, sem charadas dessa vez.
- É sempre bom ver o senhor de novo meu pai.
- É sempre bom poder visitá-lo, meu filho. Estou sempre velando por vocês.
Dito isso, Joaquim saiu caminhando por um estreito caminho de terra, até não ser mais visto.
FIM.