Visões de uma criança
Mamãe está triste de novo. Ela sempre fica assim, depois que discute com o papai; eu não entendo o motivo dessas brigas: do trabalho, ele vai para a rua, e ao voltar para casa, se encontra... diferente. Não é o mesmo, como se usasse algum disfarce. Meu pai é calmo e alegre normalmente, mas nessas horas ele adquire um mau-humor rancoroso, se transforma num monstro, como o bicho-papão que fica embaixo de minha cama.
Ainda que eu tente entender tudo que se passa nos momentos seguintes – as vozes alteradas, a porta do quarto fechada, os gritos e choros de minha mãe –, não consigo de todo. Somente me encolho em minha cama, como ambos me ordenaram, esperando o barulho cessar. Às vezes cochilo, e mamãe vem depois e me recosta no colchão, me cobrindo. Sinto que suas mãos tremem sob o cobertor.
Quando pergunto o que está acontecendo, ela diz para eu deixar para lá. Hoje não foi diferente. Indaguei o que foi aquilo ontem à noite. Mamãe virou sua face meio arroxeada para mim, e fitando seus olhos tristes, suplicantes, me calei. Não queria trazer mais infelicidade.
Papai ainda dorme, contudo, daqui a pouco despertará. E, como em todos os outros dias que se seguem após seus ataques de fúria insana, ele se sentará para almoçar, pedirá desculpas, voltando a ser o homem de antes, e tudo parecerá bem. Só parecerá. Acho que eles fazem essa encenação por minha causa. Não percebem que, mesmo eu sendo criança, percebo que há algo errado.
A tristeza de minha mãe começa a desvanecer; ela sabe que, agorinha, as coisas serão aparentemente normais outra vez. É nessas ocasiões que me sinto mais impotente: não sei o que fazer para ajudá-la, então a deixo mergulhar na sua própria ilusão.