Meninos de rua: a doença
As atividades que desgastam o corpo e corrói a alma vão deixando suas vítimas espalhadas pela cidade. O frio e sua epidemia adormecem do lado dos meninos de rua. A tosse seca, fruto de um pulmão agonizante vai mandando o seu recado, entendido por todos aqueles que estão ao seu redor, transformando-se em coral uníssono. De repente a febre volta, nossa criança rasteja débil pelas entrelinhas da cidade. A dor incomoda muito, fez suas vítimas no passado longínquo. E agora acompanha pedacinhos de gente descalça e maltrapilha dia após dia nos guetos da cidade.
Seu magro corpo pede socorro. Uma criança doente é perigo de vida. Ela precisa ter pernas, ela precisa de agilidade para lidar com a violência, com o inusitado. As feridas muitas vezes não cicatrizam, acompanha os meninos e meninas, por fora e por dentro como uma chaga aberta ao público. Sem direito ao mínimo de tudo, padecem, não envelhecem e morrem. A dor rasga o corpo franzino, provoca uma dança sinistra. Contrações e mais contrações despertam o corpo ao lado. O cuspe vermelho e o gosto de sangue mandam o aviso. A gravidade da situação inspira cuidados. O magricela está prestes a desencarnar. Não há muito que fazer. Infelizmente o medicamento de uso diário nada poderá fazer para arrancar-lhe o sofrimento. Não é preciso mais a cola de sapateiro. O corpo não precisa mais dela, quer descansar. Lentamente, sob o sol do meio-dia, vai amolecendo, acompanhado por outro olhar de dor. Seu companheiro agora terá a certeza da perda.
Uma verdade: se não há um sistema único de saúde para milhões e milhões de pessoas com direito reconhecido, imaginem para quem vive sem direito algum. Um socorro imediato poderia salvar-lhe a vida e conceder-lhe alguns meses a mais de sofrimento. A repetição do cotidiano iria trazer uma outra cena parecida com esta, como num ciclo vicioso. Lentamente, a tosse vai ficando cada vez mais fraca, os seus olhos já não querem mais um ponto fixo, suas mãos já não acenam, já não furtam, não mais acariciam o companheiro de poucos anos. Poucos anos de uma vida. Alguém passa do outro lado da rua. Não entende uma criança com outra criança no colo. Será mais um pedinte, poderia está se perguntando. Ou mais uma emboscada armada na paisagem de pedra da capital. As lágrimas pingam constantemente num corpo que não responde mais com a mesma energia dos tempos de rua. Apenas um involuntário coração bate fraco dentro do magro peito e os pulmões comprometidos, que respondem baixinho com pouco ar. Já não há possibilidades de vida nesta vida. Seu companheiro agora prepara a despedida. Alisa o outro, lhe faz um afago, um carinho último. Afana os cabelos do seu amigo menino, que não poderá se fazer jovem. A esta altura a doença já se alastra e toma conta do que é seu. O outro, agonizará mais tarde com a mesma tosse seca, com o gosto de sangue na boca e o cuspe vermelho, presente involuntário do seu melhor amigo.