O Pequenino e o Guardião

Vi hoje a criança que acabara de abrir a porta do quarto.

Sua primeira vez.

É noite e seus pais repousam o sono dos justos,

A hora é de vagar além dos limites do diminuto reino,

Pôr a prova o medo do novo,

De enfrentar os mais terríveis algozes do imaginário,

Aquilo que o aguarda do lado de fora de seus domínios.

Caminhar vascilante, desconfiado, receoso e impreciso.

Pés calçados em meias coloridas,

Arrastam a poeira, que em anos passados,

Foi a única que desafiou a imponente porta fechada,

E agora ele.

O pequenino gira a maçaneta enferrujada,

Faz ranger as dobradiças cansadas e põe-se enfim a sair.

Mas pára ...

Desvendou o estalar da madeira velha um som gutural,

Grave, intermitente e obscuro,

O sopro quente das vozes de demônios,

Ou só um homem. Esguio, de poucos cabelos,

Face marcada, expressão de quem viveu de aguardar.

Um velho de certo,

Que ali estacionou definitivamente, sem preço ou pressa.

O pequenino ali parado com a mão na maçaneta,

E os pés em pontas de dedos,

Questionou-se quanto aquela presença:

Seria um servo inequívoco de suas próprias vontades,

O guardião de seu duradouro exílio,

Uma sombra,

Uma chaga, a tormenta, uma sina, uma peça talvez ?

Sentou-se. Ergueu-se. Atinou.

E aquela criatura que nada falava, triste, insípida,

Sem ação ou emoção,

Resumia sua insignificância a copiar o pequenino,

Sentou para depois erguer o corpo,

Uma mescla risível de pele e osso, desvalido de graça.

De que servia a presença de um,

Na porta do outro, aventureiro tenaz, senão ...

Preciso dizer que choquei-me numa determinada hora.

Vi no pequenino o velho, no rosto de um,

O medo do outro, as mesmas marcas,

E nos pés do guardião, as mesmas meias coloridas.

Pobre criança, imagem refletida de si mesmo,

Criou o algoz, o medo e o limite num quarto.

Retrocedeu, encostou a porta e jurou nunca mais sair.

Paulo Henrique Coutinho

31.01.07