Cigarros e terapia
Condensei tudo que era ali atrás e encostei no fundo do elevador. Aquela algazarra juvenil me comovia. O falatório desenfreado, risos, planos. Durante os poucos segundos que levava a caixa do nono andar até o térreo parando no quinto experimentei a infinita e renovada sensação de andar no meio de desconhecidos.
Desci o lance de degraus e abri a porta de vidro e em alguns passos atravessei o portão que dava para a rua. Um senhora que chegava das compras gentilmente segurava o portão com toda a calma que se pode ter quando se é idoso. A idade trás seus benefícios. Mas não eram muito apreciados por ela. Estava meio impaciente.
Deixei para trás sua inquietude e entrei no fluxo da calçada. Pessoas passavam. Uma deliciosa menina com roupa de academia andava alhures, falando em seu celular em uma conversa bem animada. Dois taxistas discutiam alegremente, para um deles apenas, a vitória do time no dia anterior. Na esquina o já conhecido menino que vende empadinhas colocada tiras de madeira no forninho e o cheio de massa cozida com madeira queimada saltitava caoticamente pela rua.
Atravessei me desvencilhando dos carros parados que aguardavam o sinal abrir e chegando do outro lado parei, olhei para os dois lados. Puxei a carteira de cigarros do bolso, o isqueiro branco mundano fez o fogo e dei a tragada inicial. Aquela que me acompanhava inteiramente nas quartas-feiras quando me punha a caminho da psicóloga.
O caminho de cinco quarteirões até lá me fazia pensar, e muito. Eram os momentos que mais pensava profundamente. O que dizer a terapeuta? Como ser sincero e não mentir a si mesmo? O que tinha acontecido nessa semana? O pior, o que eu tinha descoberto sobre mim mesmo nesse breve intervalo de sete dias?
Os passos desviando de buracos, velhos e crianças me levavam tranquilamente. Cada passo dado com segurança de quem conhece o caminho e aprecia inteiramente o percurso. Primeiro por conhecer tudo o que há nele, sempre há algo diferente. Depois por me dar esse prazer de pensar. De ver. Sim... dever. Tinha que pensar sobre alguma coisa que falamos na ultima sessão.
Inflexibilidade. O que poderia eu dizer para ela sobre a minha inflexibilidade? Sabiamente já tinha dado conta, há tempos, que realmente era inflexível. Sentia meio mal por tentar encontrar uma maneira de falar para que rendesse o assunto. Para que realmente pudesse me descobrir, para que esse conhecimento aflorasse.
Realmente no dia a dia tinha inúmeras chances de ser inflexível. Não achava algum caso prático disso. Além das vezes em que entrava em uma discussão, além disso... nada. Estava sendo inflexível comigo mesmo por não conseguir achar em mim esse quê de dureza. Todos somos duros, muitas vezes com pessoas amadas.
Passos e passos. Sempre gosto de passar pelo posto de gasolina na esquina do primeiro quarteirão do caminho. A calçada é estreita. Ela aprisiona os movimentos, muita gente na rua pouco espaço. Assim que se entra no território dos combustíveis há uma amplidão maior. Uma zona de manobra, podemos ser mais flexíveis.
Seria a inflexibilidade essa falta de espaço interno? Essa zona de manobra que não possuímos? Por isso apegamo-nos a esses pequenos espaços. Muitas vezes insuficientes para as várias pessoas que somos e muitas vezes temos aquelas velhinhas que andam em grupo e atravancam o caminho para os mais apressados que possuímos. Essa falta de espaço... trás com certeza a impaciência, a vontade de passar por cima. Mostra quanto que temos de afobados.
Diminuí o ritmo e passei a dar meus passos de acordo com a velocidade disponível. Eram alguns metros até que a amplitude do posto me deixasse passar por elas. Nesse meio tempo tinha que ser paciente e lidar bem com a pequenez do espaço, assim como via a pequenez do ser humano quando não tem opção. Acuados atacamos, na maioria das vezes entes queridos.
Pedi desculpas a uma delas em minha frente, inevitavelmente tinha, antes de diminuir o passo, tropeçado no calcanhar de uma delas. Andava muito próximo. Impaciente tentava achar um caminho onde não existia. Nesse afã me senti incomodado. Parei. Outro cigarro. Outra primeira tragada, e de volta ao caminho. Mais calmo.
Mas isso não entrava no âmbito da inflexibilidade, era mesmo impaciência. Poderia com toda a minha jovialidade ter contornado pela rua o grupo de idosas. Mas seria contornar o problema pelo caminho errado. Paciência. Umas tragadas a mais e estava na zona da alimentação automobilística. Aquele espaço todo para andar. As pessoas andavam mais soltas, com mais espaço.
Seria então o problema da impaciência a falta de espaço? No elevador me sentia tranqüilo. Eram alguns segundos só. Seria então a falta de espaço por muito tempo? Os relacionamentos se apresentavam naquele momento sobre essa ótica para mim. Falta de espaço por muito tempo. Brigas, impaciência. Gostar de alguém basta para superar essa briga?
Atravessei o posto com calma e tranqüilidade, as únicas que só podiam acontecer pela liberdade e pelo espaço. Parei no sinal que de verde anunciava o fluxo de carros e ônibus estressados, buzinando, correndo, para chegar mais rápido, para passar o sinal antes de fechar, xingando aquela que parava no canto da rua para que uma velhinha saltasse do carro.
Realmente percebi começando na inflexibilidade o tanto de impaciência que se manifesta no caminho da minha casa até a psicóloga. Mas estava longe ainda da inflexibilidade. Atravessei a rua pensando o que levava aquele casal que estava do outro lado da rua transversa a discutir com tanto furor. Pareciam que se gostavam, mas um não aceitava o que a outra tinha feito, seja lá o que for.
Isso soava mais como inflexibilidade para mim. Era até engraçado, pois caía como uma luva no assunto. Aceitaria que minha parceira, se tivesse uma, traísse? Agisse de tais formas que fosse inaceitável? Provavelmente sim. Mesmo me considerando paciente até demais. Seria inflexível admitir que eu era impaciente? Estava eu querendo construir uma idéia de mim diferente da realidade?
Passei pelo valão que cortava a rua que caminhava. Ali estranhamente saltou para fora a inflexibilidade. O caminho era aquele e a água suja só podia percorrer daquele jeito. Eu percorria minha vida de um jeito como que delimitado por dois muros de concreto? Sem poder ou dar chances a mais para as possibilidades?
Espantava-me a quantidade de perguntas que iam sendo feitas por mim, e quase nenhuma resposta. Eu, sim isso eu era, apresentava sinais claros de inflexibilidade perante a responder algumas perguntas e me ver totalmente sozinho em minha ilusão de quem era e o que pensava. Desconstruiria assim minha personalidade? Seria assim tão fácil aceitar um fato que mudaria todo meu modo de ser?
As grades de ferro dos edifícios? Elas eram inflexíveis, com certeza. Tente dobrar uma... totalmente rígidas. Inflexibilidade estava diretamente atrelado a rigidez? Eu era bastante maleável. Tinha um jogo de cintura para lidar com as situações. E novamente percebia que ia vagando pelo exterior, e não me concentrando em mim mesmo. Raios! Lidar com os outros é uma coisa, lidar consigo mesmo é outra.
Amava esse exercício. A terapia funcionava ali, naquele momento. Aquelas perguntas e vislumbres de respostas me davam certa alegria e apreensão. Muito mais alegrias. Muito mais segurança. Era uma barra de ferro? Talvez, em alguma horas. Talvez em bastantes horas. Sempre reticente em aceitar plenamente a opinião alheia, o palpite do outro, aquela dose de preocupação dos que gostam de mim. Por quê?
O pequeno restaurante italiano! Sempre olhava de longe aquela casa e nunca entrara. Cartaz na porta dizia o prato do dia, raviolli ao molho funghi. Certamente iria retornar ali, não naquele dia, para provar daquelas delícias. Comer, sem dúvidas, é um dos melhores prazeres que se pode ter. Comer com apetite é renovador. Aí estava algo que não era inflexível. Comia de todos os tipos e variedades das culinárias terrestres. E se ainda não tinha comido coisas bizarras foi por falta de opção.
Mais um sinal fechado me obrigava a ficar parado contemplando o outro lado da rua. Ainda faltavam dois quarteirões. Dois blocos em que meu pensamento ia vagar como já estava há muito tempo transitando das respostas às perguntas. E vice versa. Sabia exatamente o que serviria de base. Sim era inflexível. Era rígido. Não dava chance às águas trilharem caminhos diferentes.
Principalmente em relação ao meu pensamento, minha opinião sobre as coisas. Como me render a argumentos toscos proferidos por achismos infundados? Como baixar a guarda para pessoas que falavam mais rápido que podiam pensar? Ouvir, podia, não fazia com tanto afinco, mas aceitar? Apreender é difícil quando se trava um diálogo com outrem cuja pretensão não é chegar a lugar algum, mas sim sair por cima, sobressair-se no que se pretende, massacrar o outro com seu ego.
Daí sim, eu era extremamente inflexível. Medo? Raiva? Muito mais por proteção. Não era assim tão rígido. Havia mudado minha opinião muitas vezes ao longo do último ano. Infelizmente por conta de uma ou duas pessoas somente. O resto só me ajudou a consolidar mais minha forma de ver a vida, o mundo. De experimentar as coisas. De amar.
Faltava atravessar a avenida principal. O consultório era do outro lado da larga rua. Aquela fileira de carros, uns obrigando os outros a andarem enquanto os que andavam puxavam os que vinham atrás. Quase uma inexorável verdade da vida. Um duplo processo onde uns excitam outros que por sua vez conduzem estes como ativos. Complexo? Tudo é claro como água.
Aquele sinal, carros parados. Fixos, imóveis em um tempo. Noutro totalmente móveis. Assim éramos nós? Assim somos nós. Basta saber-se o limite. As bordas. Era flexível quanto a isso, mas não quanto aquilo. Ser inflexível com sinal vermelho e ser flexível com o sinal verde. Muito fácil, muito mundano. Saber como poder flexibilizar o proibido e como endurecer o permitido.
O segredo estava ali desnudo. Acendi então o terceiro. E mais uma tragada inicial que iria me levar até a total queima daquele que pendia entre meus dedos. A fumaça! Sim ela, expansível. Ela tende a preencher todo o ambiente que estiver e ficar homogênea! Flexibilidade até a estabilidade. Somos fumaças buscando a estabilidade? Tentamos nos expandir para os cantos e no fim a serenidade.
Sim, e com o passar dos passos passei a perceber o possível. Quer dizer, era possível, uma possibilidade na mente, talvez impossível no mundo. Aquele asfalto, aquelas paredes, aqueles sinais, carros, tudo, muito fixo, muito duro, muito cru. Um mundo rígido que celebrava em silêncio sua manifestação presente. Era nós contra ele, e ele contra nós.
Fixo, estava o cartaz que propagandava o nome e a função da psicóloga em frente ao portão branco que permanecia ali inerte, como sempre permaneceu. Mais ferro. Toquei o interfone, breves momentos passaram até que o surdo clank soou somente para mim. Ninguém mais na rua ouvira, o barulho era demasiado. Levantei-me pelos três grandes degraus que separavam a porta principal do portão, nos abraçamos e sentei no sofá bege com almofadas coloridas e uma espécie de capa com motivos indianos, que deixava o ambiente mais descontraído.
_ E aí como está? – perguntou ela como sempre.
_ Acho que temos muito o que conversar.