O velho e o sítio

Viu quase um século e morreu ali mesmo, na varanda, moribundo. A cabeça pendia para um lado, os braços arqueados, as pernas estiradas. O cadáver tinha um aspecto flácido, despejado numa cadeira de balanço que já se desmontava. Um mal súbito o levou deste mundo numa rapidez até agradável. Sempre baixava a cabeça no oratório e pedia a Santa Terezinha que o deixasse ir sem sofrer. E foi assim. Chegou a ver as galinhas ciscando e beliscando o milho. Seu cão fiel entrou debaixo da cadeira, rodopiou e deitou. Se olhasse para baixo, via as orelhas dele e o bafo úmido marcado no chão. O dia que estava cintilante tornou-se nublado e negro, e a vida findou-se com a chuva. Recordaria daquelas primeiras gotas no além? Que importa? Subiu deste jeito, com cheiro de terra molhada.

Entortava o capim com as mãos, enrolava-os no indicador, esfregava com o polegar. Levava o capim ao nariz e sentia o odor do mato. Da terra. Pra lá e pra cá ia a cadeira, balançando enquanto o vento fazia dançar a samambaia que ficava pendurada acima da sua cabeça. O olhar ia longe.

Não recebia visitas. No máximo aquele moleque da mercearia que vinha e ficava fazendo perguntas. Do lado da cadeira de balanço, sentado num banquinho. Mastigava palha e tinha o mesmo olhar perdido na roça. “Vai trabalhar!” dizia o velho e o moleque se despedia pedindo a bênção ao padrinho. Era o único com quem trocava mais de três palavras. Era contente quando podia fazer isso, mas não avisava ninguém, não queria que a alegria atrapalhasse a mansidão e o sentimento de estar sempre perdido e procurando razões.

As cartas eram lidas sim, é verdade. Mas no silêncio e no isolamento. Para o carteiro apenas um aceno com a cabeça. Levava dois ou três dias para ir até a porteira buscar as cartas. A caixa de correio já enferrujava, por isso trazia o facão. Dava uns golpes com o cabo em cima da caixa e ela se abria. Seguia direto para a casa, fechava as janelas, a porta. Trancava-se no quarto e sentado à escrivaninha lia as novidades.

A felicidade vinha tocá-lo com mãos delicadas, com afagos e sorrisos escondidos. Notícias dos netos, dos filhos, dos irmãos. As cartas eram os membros da família que falavam, que estavam reunidos ali. Conversavam e riam, brincavam. E tudo acabava quando as cartas eram colocadas na gaveta. Trancadas. Nada poderia atrapalhar a sua lucidez. Principalmente estas cartas estúpidas. A vida voltava a ser para o velho o que sempre foi. Estava de volta à angústia.

A solidão, esta sim boa companheira, fiel, perpetuava na alma a sensação de que o fim estava sempre próximo. Ao lado. Na descida da escada. No abrir da porteira. No cão que passava-lhe entre as pernas.

Uma vez eu o visitei. Uma única vez.

Guilherme Pedrosa Lima
Enviado por Guilherme Pedrosa Lima em 03/05/2012
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