O escultor

O Escultor

Tenho um ateliê de escultura, faço esculturas em madeira, trabalho a partir de uma peça inteira, então vou entalhando, esculpindo e dando forma a minha arte. Faço bustos, bichos, placas, objetos de decoração metidos a besta, móveis, qualquer coisa, eu esculpo qualquer coisa que queiram em madeira. Sou muito bom no que faço, não sou modesto, e cobro caro. Alguns me chamam de carpinteiro, não sou, sou escultor. Meu pai, que já se foi sem eu tê-lo conhecido, também era escultor, ele trabalhava com barro, fazia esculturas na forma e no tamanho de humanos, assim me disseram. Meu entalhe é conhecido internacionalmente. Tenho obras espalhadas pelo mundo, sou considerado um dos melhores artesões que existem em cedro, mogno e cerejeira. Dou vida às toras de madeira usando minha prestigiosa imaginação. Contudo, só mesmo nessa tarefa me regozijo, na madeira deixo tudo de bom que há em mim, todo meu talento e sensibilidade, tudo de mais honesto que possuo. Quando não estou esculpindo sou um ranzinza incorrigível, depressivo, solitário, e também não tenho a mínima consideração com o próximo, para mim, pedaços de madeiras e gente são a mesmíssima coisa, não, não é assim, pedaços de madeira são bem melhores que pessoas, até por que elas me dão o sustento. No duro mesmo, na real, é que detesto as pessoas e principalmente meus clientes mais assíduos. Tem um mesmo, um cretino de marca maior, um imbecil de carteirinha, chamado de Herculano, que vive aqui em casa e diz ser meu amigo, e eu o desprezo com muito gosto. Eu ignoro todo mundo, todavia, o Herculano é quem eu mais sinto prazer em desprezar. O idiota possui as duas mulheres mais feias do mundo, a própria esposa e um busto dela que ele mandou fazer, pagou-me uma fortuna pela peça, uma ideia genial dessas tem que ser cobrada a contento, sem dó nem piedade, e eu cobrei, ha se cobrei, o pulha me pagou muito satisfeito, com um grande sorriso nos lábios. Apesar dessa minha antipatia e aversão ao ser humano, vivo rodeados de pessoas me pedindo conselhos e querendo minha amizade, me chamam de amigo e tudo, vejam vocês que situação. Devo ter cara de terapeuta ou psicólogo ou psiquiatra, só pode ser. Tento de todas as formas possíveis não ser muito afável, não entro em conversa íntima com ninguém, não quero saber nada da vida ou da família de ninguém, não me importo se eles, os clientes, têm filhos, esposas, maridos e coisa e tal, mesmo quando sei que eles têm esposas, maridos, filhos e netos e irmãs e sobrinhos e periquitos e papagaios e cãezinhos peludos e gatinhos felpudos, também não pergunto, não pergunto absolutamente nada, simplesmente por que não me interessa, pode acreditar, não interessa mesmo. Pouco me importa como eles estão passando, se estão saudáveis ou morrendo com doenças incuráveis, ou se os filhos vão mal na escola, se passaram de ano ou foram reprovados, se seus sobrinhos são dependentes de drogas ou traficantes, se seus netos são espertos e passaram no vestibular para Medicina, ou são burros como uma porta, se seus cachorros fugiram, sumiram ou morreram, se seus gatos cagam na caixinha de areia nojenta ao lado da geladeira na cozinha, ou em cima do telhado ou no sofá da sala. Nada disso me diz respeito, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Faço isso só para que ninguém me faça perguntas impertinentes e pessoais, porém, incrivelmente, isso que faço não surte efeito algum, todos eles, sem exceção, vivem querendo saber da minha vida e me enchem de perguntas cretinas e desabafam todas as suas frustrações e tristezas em cima de minhas orelhas, que não são penicos. Algumas vezes sou grosseiro nas respostas e ainda assim, esses fulanos, não desgrudam do meu pé. O Herculano mesmo, dia desses, teve aqui, já passava das dez da noite, eu já tinha me recolhido e tudo, quando a campainha tocou. Estava deitado, rodei pro outro lado não dando bola, só que a insistência foi grande e irritante. Levantei-me e fui abrir a porta e dei de cara com a cara de tacho do imbecil do Herculano. Perguntei:

_O que você quer? Eu já estava dormindo, amanhã acordo muito cedo, estou cheio de encomendas por terminar.

_Eu queria conversar contigo um pouco, meu amigo. Briguei com a Sueli, não sei o que fazer, preciso de um conselho, uma ajuda, uma palavra amiga. Tive vontade de rir e despachar o parvo a ponta pés. O que eu tenho haver com a briga dele e sua horrorosa mulher? Ele deveria era apanhar de cinta todos os dias por ter se casado com uma coisa monstruosa daquelas, e neste momento deveria está comemorando por se livrar daquele encosto, e não choramingando. No entanto, ele parecia abatido e triste. Ele estava bastante afobado, suas grandes bochechas estavam vermelhas, um vermelho sanguíneo. Bolinhas de suor faziam um enxadrezado transparente em sua testa e seu hálito mostrava que estava alcoolizado. Não tive outro remédio senão convidá-lo a entrar. Tive que ouvir lamentações e mais lamentações durante quase duas horas. Eu só respondia com monossílabos, isso quando respondia, na maioria das vezes eu só balançava a cabeça negativamente ou afirmativamente, e meus pensamentos corriam na direção da minha cama, que com certeza estava vazia e triste esperando por mim. Certa hora ele falou:

_Há meu caro Plínio eu não queria perder aquela mulher por nada nesse mundo. Ela é tudo pra mim. Eu estava quase cochilando nessa hora, mas aí, não resisti à tentação e falei:

_Realmente seria um crime você deixar uma mulher tão bela quanto a sua escapar. Ele pavoneou-se todo, deu uma grande gargalhada e disse.

_Percebo que você é um admirador de belezas raras e incomuns, ela realmente é linda.

_Sim, sim, beleza raríssima, sem dúvida lindíssima. Tão linda quanto um ornitorrinco depenado, com o bico torto e olhos vesgos, pensei em dizer, acabei não dizendo. Ele me alugou por mais um tempo e finalmente, para minha satisfação tremenda, foi embora, e me agradeceu efusivamente por minha companhia agradabilíssima, e pelos utilíssimos conselhos que eu dei. Conselhos? Mas que conselhos eu dei? Quando acabar o solitário e carente de companhia sou eu. Lembro-me de ter voltado pro quarto e ter demorado a dormir, também lembro que tive um sonho estranho nesse dia. Sonhei que algumas pessoas esculpiam o meu rosto, só que não era em madeira, era o meu rosto de verdade, o curioso era que eu não sentia nada, dor alguma. Eles passavam suas goivas afiadas tirando lascas da minha pele dando forma a minha cabeça e ao meu cérebro, tentavam arredondá-lo, tirando os ângulos mais obtusos que originalmente ele tinha, Num certo momento comecei a pensar, dentro do sonho, que seria bom ter amigos de verdade ou coisa que o valha, e tentar mudar o meu jeito de viver e ser uma pessoa melhor e mais social e tudo. Comecei a perceber que estavam esculpindo minha consciência e isto estava influenciando em minha personalidade, abri a boca tentando gritar, mas o som não saia, fui ficando desesperado e me debati tentando me livrar dos entalhadores de cérebro alheio, até que acordei molhado de suor e muito aflito, passei a mão na cabeça assustado pensando que estava sangrando, logicamente não estava, não consegui dormir mais naquela noite. Roguei uma praga ao infeliz que me visitou e fui trabalhar. O tal Herculano, o que se diz meu amigo, nunca mais apareceu, tomara que demore muito, e só venha até aqui com muita pressa e não possa conversar, pague o que me deve e faça outra encomenda, desta forma seria perfeito. Graças a Deus continuo o mesmo, nada mudou depois daquele terrível sonho, ainda sou solitário, arrogante, antissocial, continuo cagando para a humanidade e ainda sou o melhor escultor que existe por essas bandas.