O dia em que o valente Paulo chorou
Zelinha só tinha oito anos. Porém a impressão naquela tarde foi tão forte, que até hoje ela conta com detalhes o que aconteceu: Era o ano de 1955, no sertão da Bahia, onde ela nasceu e se criou, em uma pequena cidade cravada no polígono da Seca. Seu pai, de apenas formação primária, era um desses sertanejos calejados pela luta decorrente da falta de chuvas. O seu hábito de olhar para as nuvens, repetidamente, divertia os mais jovens, por não “captarem” o quanto a chuva era importante nas suas formações, pelos seus sofridos pais.
Proprietário de uma média fazenda, Paulo criava ali, gado, plantava capim, fabricava queijos, apoiado sempre pela inseparável companheira, Rosalina, mãe de todos os filhos. Em uma área da fazenda, denominada, estranhamente, de merédio, fazia roçado, e conservava um pomar, de onde tirava a alimentação da família.
Por não conseguir viver só da Fazenda, pela grave descontinuidade das chuvas, Paulo tinha ganhos financeiros (negócios) paralelos, para complementar os gastos com a prole. Era considerado herói, por ter colocado um a um, seus filhos na Capital para estudarem, depois que concluíam o primário na pequena cidade. Quase todos fizeram faculdade, só não tendo nível superior quem não quis, e no fim da vida, falava orgulhoso de ter filhos: advogado, engenheiro, socióloga, jornalista, secretária e filósofa. Um dos filhos fez contabilidade optando por trabalhar com Paulo no Comércio, e duas mulheres o nível médio, uma optando pelo magistério.
Paulo foi morar na Capital, onde terminou os seus dias, abandonando sua cidade natal, porque estava muito velho e já não tinha segurança para ficar longe dos filhos, que optaram por permanecerem em Salvador. Os amigos conterrâneos alegavam que, se o velho Paulo tivesse continuado na cidade, proseando nos finais de tarde em frente às pequenas lojas, como era seu costume, iria aos cem anos. A verdade é que ele nunca se adaptou à nova vida urbana. Em uma primeira experiência na Capital, na década de 1960, quando colocou um armazém de secos e molhados com o terceiro filho, ele optou por retornar para o interior, depois de 15 anos, afirmando que não se acostumou no grande Centro.
Naquela aludida tarde, Paulo estava com apenas 43 anos. De personalidade irrequieta, não se considerava apenas agricultor, mas principalmente “ homem de negócios”. Foi um pequeno “exportador” de fumo, optando por comercializar o “refugo” desta lavoura, (baxeiro), que representa o insumo na fabricação de charutos. Este material considerado inferior nos roçados de fumo, era comprado diretamente por Paulo, e importado pela fábrica de charutos de Maragogipe (Bahia), chegando ali através de outros compradores intermediários.
Porém a seca era a grande vilã na vida do batalhador Paulo. Muitas vezes ele ficou sem opção, chegando a pensar em mudar-se da cidade, inclinando-se por Jacobina, na confluência com a Chapada Diamantina. Depois de checar a cidade, desistiu, ou não teve coragem de abandonar sua terra...Mudava-se nas épocas mais difíceis da cidade para a fazenda, com a companheira e filhos menores, para cuidar pessoalmente do gado, fornecer ração e palma, e aproveitar os derivados do leite. Muitas vezes ele selava o cavalo e ia a cidade levando produtos para vender na feira.
1955 foi daqueles anos, em que a “ginástica” dos agricultores não era suficiente para vencer as dificuldades advindas da estiagem. A comida do gado desapareceu, as reservas de água minguavam, homens, mulheres, crianças e animais se deparavam com a fome e a sede. Sr. Paulo não encontrou outra alternativa se não trazer o gado da fazenda e despachar em caminhões para outras pastagens alugadas a preços exorbitantes.
Naquela tarde fatídica, Paulo acabara de almoçar, quando começou a escutar o aboio dos vaqueiros, e o urgido do gado, adivinhando que era o seu chegando, magro, com fome e sede, para aguardar o caminhão que o levaria para o Caritá. A tristeza estava estampada na fisionomia de homens e animais! Sr. Paulo se desesperava. Inquieto por natureza, ia e vinha até a porta da frente de sua casa, dezenas de vezes, retornando, reclamando, vociferando, xingando aquele seu destino. Enquanto as reses rugiam orquestradas na estreita rua, a vizinhança curiosa se plantava na frente de casa, assistindo aquele fúnebre espetáculo.
De repente, começam a ver os filhos pequenos de Paulo carregando vasilhas com água da cisterna de sua casa, fornecendo aos bezerros, novilhas, garrotes, bois e vacas. Em continuidade, a vizinhança imita as crianças e o socorro vem em maça, e Paulo, como de costume, olhando para cima. De repente, descobre uma nuvem escura, que crescia, mas como acontecia outras vezes, pensou: “não vem, porque preciso tanto”. Porém, a nuvem aumenta, e escurece, e mais aumenta, até que, às quatro horas, desaba entre trovões e relâmpagos, forçando a vizinhança a recolher baldes e adentrarem as suas casas. “Os tanques estão sangrando”, “os paredões das barragens estão sendo levados pela chuva”. Gritavam eufóricos a vizinhança e os vaqueiros depois de ouvirem as notícias no Auto - Falante da cidade.
Paulo estava abobalhado. Primeiro a emoção com seus filhos socorrendo os animais, a vizinhança solidária, e por último a redenção: Chovia. E chovia como deveria chover. O suficiente para transbordar riachos, barragens, molhar a terra para o capim crescer e alimentar o gado, plantar os roçados, dar trabalho aos peões, e vencer o desânimo. Seu gado retornando os seis quilômetros para de onde nunca deveria ter saído.
Ao tempo em que a chuva batia no telhado, As lágrimas de um Paulo emocionado, extasiado, feliz, agradecido, desabavam no rosto magro, enquanto soluços cortavam sua garganta. E os filhos espantados, não entendendo muito o significado daquele choro, sabiam somente que, pela primeira vez, via aquele homem guerreiro chorar.
E Zelinha entre eles, só veio entender muito tempo depois, o quanto significaram aquelas lágrimas...
Jô Ribeiro