Por que é bom ser nada
De manhã cedo ela levanta, toma banho, escova os dentes e ajeita o cabelo. Sacode o marido, que acorda e sorri. Sem beijo nem bom dia. Ela desce, passa o café e ferve o leite. Sobe outra vez, acorda as crianças, que só levantam depois de muita insistência. Dá um beijo na caçula e a manda descer. Põe a mesa, onde sob a lâmpada esbranquiçada fazem o desjejum, sem se falar nem olhar. O mais puro silêncio, sonolência no olhar das crianças.
Dá um beijo na testa das duas meninas que estão no sofá, zonzas de sono. O mais velho já havia subido. Em seguida outro beijo seco, na bochecha fria do marido.
Ela anda até o metrô, são 7h16, dava tempo, não se atrasaria como da última vez. Nesse momento de espera ela se enche de torpor, na plataforma, escorada na parede. Ela olha o trilho e nada passa em sua cabeça. “Nada passa na cabeça”, pensa ela, e é isso que passa. Então assim meio despercebida ela começa a sorrir, sem lembrar-se de nada que tenha graça. Controlou o riso para não parecer uma demente. Lembrou-se de seu marido, doente, coitado. Sua expressão torna-se séria. O médico não deu muitas esperanças não, mas ao ver de Júlia são todos assim, esses doutores, indiferentes. Essas “coisas” são complicadas, lembrou-se que quando pequena, conheceu uma senhora, D. Maria, havia morrido de algo parecido... Pôs-se a pensar em como seria caso Augusto morresse, como ficaria, sozinha, com três filhos. Já não tinha mais a mãe para ajudá-la, ah, a mãe, quem lhe dera! São tantas contas a pagar, tantos problemas, nunca conseguiria resolvê-los sozinha. A pressão do trabalho, a labuta diária. Uma mulher não conseguiria sozinha, logo ela, que sempre julgou ser tão forte, percebera que a já tão presente morte de Augusto abalaria as estruturas de sua vida. O que mais lhe preocupava então eram as crianças, as mais novas em especial. Murilo, o mais velho, era ‘diferente’, ele suporta. Mas e as pequenas? Como seria sem o pai? Júlia então decidiu parar de pensar em tanta bobagem. Onde já se viu, ser assim tão pessimista? O trem deve ter atrasado, pensou ela e logo se agitou por completo, não tinha tempo para perder assim. Aflita, olhou ao redor e viu algumas dezenas de pessoas que também esperavam o trem, tranqüilas. Indiferentes, julgou ela. Como podem ser assim? Tão..., Júlia perdeu a palavra e sentiu frio. Sentiu medo, assim de repente e automaticamente começou a andar sem saber por que andava. Subiu as escadas e viu uma porta, a porta do banheiro feminino. Abriu e caminhou até a pia. Abriu e bolsa e a revirou em busca de nada. Encontrou perdida entre papéis uma cartela de aspirinas. Engoliu um dos comprimidos a seco. Não tinha nenhum tipo de dor no momento, talvez... Júlia perdeu a frase. Fechou a bolsa e levantou a cabeça, de repente, o espelho. Viu-se refletida no espelho da cintura pra cima. Como estava abatida, seus olhos nunca foram assim, tão pisados. Seu rosto havia sido massacrado pelo tempo. nunca havia imaginado ser tão velha. 'Eu era bonita', disse Júlia e sorriu para si mesma. Lembrou que fora muito amada na juventude, inclusive um rapaz certa vez resolveu fugir da pacata cidade em que moravam, e a convidou para ir junto. “Vam’bora, Júlia, vam’bora daqui...” disse ele em sua janela. Era Mário, de olhos verdes. Impressionou-se por ainda lembrar o nome. O fato é que ela não foi, sempre fora uma moça ajuizada. Nunca havia se permitido pensar com o coração. A razão em primeiro lugar. Sempre. Sempre fora muito amada pelos poucos homens que teve, disso tinha certeza, mas não conseguia lembrar de nenhum a que tenha amado. Nem mesmo a Augusto, seu marido. Talvez uma certa compaixão, ternura ou algo do tipo, aceitou o pedido de casamento por que pensara na possibilidade de não haver outro jamais. E também era a oportunidade de deixar a casa da mãe. Então Júlia tornou-se séria outra vez, pensar em amor lhe levava a um grande vazio escuro onde não se obtia nenhuma resposta. Uma zona desconhecida. O que a levava a sentir-se incompleta como mulher. Todas essas coisas de certa forma derretiam-lhe o coração, e ela sentiu no interior do peito aquele sopro gélido ao qual chamava de desespero. Lacrimejou mas não chorou. Se tem uma coisa que ela não fazia era chorar. Enquanto Júlia era razão sua mãe fora toda coração. Chorava o tempo todo. De tristeza, de angustia, de raiva, de languidez. De alegria nunca. Às vezes Júlia sentava na cozinha com um livro para observar a mãe, que arrumava a casa simples e cantava modas antigas, tinha uma voz encantadora, até que o marido, pai de Júlia, chegava, escancarava a porta, tropeçando de bêbado e cheirando a cachaça, agarrava a mulher, essa se esquivava dos beijos e o afastava com as mãos. O homem se enfurecia e lhe desferia bofetadas. Ia para o quarto e se jogava na cama. Dormia. A mãe permanecia no chão, apoiava-se ao sofá e chorava por horas. Essa cena se repetia com freqüência. E Júlia prometeu a si mesma que nunca seria como a mãe e que não choraria por nada. Lavou o rosto e o secou com sua pequena toalha verde escuro. Ao passar a toalha, apagou-se a face. A água levara consigo todos os seus traços. Ela não se espantou, ao contrário. Sentiu-se bem, como nunca. sentiu desatar em seu peito um aconchegante calor. Por que é bom ser nada. É mais fácil quando não se tem rosto. Nem mãe nem Júlia. Ela optou pelo nada. Passou a mão nos cabelos, recompôs-se e saiu. Pegou o trem e partiu.
Naquela noite ela não voltou.
Naquela noite não pôs a mesa.