OS TROVÕES DA MINHA INFÂNCIA

Ontem eu tive um sonho feliz, o qual me fez voltar a um passado também feliz, mas já bem distante. Ao acordar senti um vento suave tocando meu rosto e trazendo de longe um gostinho continuo de saudade.

Sonhei que estava dormindo no antigo quarto da casa do alto da serra onde vivi a minha infância, a casa que me parecia grande, onde moravam os meus avôs. Duas janelas davam para um terreiro que ostentava um grande pé de jabuticabas, a cuja sombra eu cresci. O desenho de suas folhas miúdas e cerradas com o tronco cheio de pontinhos negros recortava contra o céu azul, o mais azul. Esta imagem das folhas da jabuticabeira recortadas para o céu é das mais antigas da minha infância. É do tempo em que eu dormia em uma pequena cama cercada de palhinha, junto à janela da esquerda daquela casa que me parecia enorme.

No sonho, naquele antigo quarto, numa manhã gostosa e sombria e eu havia voltado para a cama, para continuar a ler um livro recém-começado, mas que logo abandonei com as folhas abertas sobre o travesseiro e fui para o peitoral da janela ver e ouvir o alvoroço de alguns pássaros numa pequena arvore logo à frente, e a inquietação dos animais, os quais pareciam pressentir algo. Aos poucos o tempo ia se modificando. Era uma forte chuva que logo viria. Grossas nuvens iam se movendo bruscamente e, depois como um manto iam aos poucos encobrindo a luz do sol. Um forte relâmpago riscou o céu já cinzento trazendo em seguida um forte, grosso e prolongado trovão. Acordei sobressaltado. O trovão era real. Chovia em São Paulo.

Mas ao emendar o sonho com a realidade brusca, senti a trovoada de verão como antigamente e ela era tão aquela, lá do alto da serra, do colo da serra, o lugar do meu sonho e da minha doce infância. Não, não é verdade que em toda parte do mundo os trovões sejam iguais! Lá os morros da serra davam um eco todo especial aos trovões. Um efeito próprio que prolongava seu rumor através dos cafezais por onde se perdiam para os confins da serra. E de repente, na ressonância desse repentino trovão, tão distante da minha infância, eu me reconheci menino, assustado e fascinado pela visão dos relâmpagos esperando a chegada da festa da chuva batendo grossa lá fora, a qual com a força que caia, fazia pareciam formar centenas de soldadinhos a marchar pelo chão, na terra quente, enquanto o cheiro de terra molhada invadia a casa. Era assim que víamos os grossos pingos da chuva caindo no terreiro, centenas de soldadinhos a marchar sobre a terra.

Os estrondo dos trovões preenchiam todo aquele lugar. Diziam que São Pedro estava arrastando móveis no céu, lavando a sala. E eu via então o padroeiro de nossa terra, com suas barbas brancas e compridas a empurrar móveis imensos e pesados no grande assoalho do céu. No grande assoalho que certamente também era feito de tábuas largas, assim como as tábuas que a mim pareciam largas a compor o assoalho daquela casa que me parecia grande. Até acho que eu não acreditava naquela história e sabia que era apenas modo de dizer, uma brincadeira, mas a imagem de São Pedro de camisolão, empurrando um grande armário preto no assoalho do céu me ficou para sempre na memória.

A casa dos meus avôs era muito bonita, com um alpendre cheio de latinhas de conservas nas paredes, onde minha avó e minhas tias plantavam flores. Tinha também um caramanchão de primaveras, de cores diferenciadas e um jardim enorme, ladeado pela frente e pelos lados por Lírios, copo de leite e flores que nunca mais vi pelos jardins do mundo. Lembro-me confusamente de uma grande touceira de espadas de São Jorge, as quais a gente cortava para brincar de chicotinho queimado no gramado de gramas fininhas, o qual também me parecida grande, sem fim. No fundo, o precioso pé de “saboneteira”. Era uma espécie de estojinho oferecido pela natureza, que nos fornecia bolinhas pretas e rijas para os disputados jogos, como se fossem bolinhas de gude. Da porta da cozinha podia avistar o grande morro por onde descíamos aos berros e risos longínquos, sentados numa espécie de canoa que caiam secas dos altos dos coqueiros. A canoa dos coqueiros que caiam já prontas, depois de bem alisadas com sabão feito de sebo e cinzas, alcançavam grandes velocidades morro abaixo.

Uma das maiores riquezas que tínhamos naquele lugar era a exuberante árvore sagrada na voltinha do caminho. Era uma majestosa paineira que deixava no chão suas painas brancas e macias. Esta paineira era a árvore de nossa família e reconhecida por toda região pela sua imponência e raízes sobressaltadas que se deixava transparecer da terra como longas e grossas veias. Todos tinham as suas árvores naquelas redondezas, a árvore dos Martins, dos Laborões, do tio Jorge, da dona Mariquinha, dos Soares...

Sim, aquela casa era muito bonita e a mim me parecia azul com uma tamareira e um coqueiro junto ao alpendre. Mas nós crianças, às vezes invejamos os que moravam nas casas lá em baixo no pé do morro. Um lugar que chamava “sossego”. Lá de cima eu ficava espiando as outras crianças correndo num silêncio profundo, como se eu assistisse a um filme que se esqueceu de sonorizar. No meio daquele lugarejo havia um campinho de futebol onde nas tardes de domingo os homens se juntavam para correr atrás da bola, enquanto nós crianças, lá do alto, juntávamos com as lá de baixo, para irmos para a beira do rio. Muitas casas ficavam à beira do rio, como as dos Torres, dos Alves, dos Rodrigues, a da nossa tia, com varanda fresquinha dava também para o rio.

Quando começam as chuvas, descíamos o morro para ficarmos mais próximos do rio para ver as enchentes. As águas subiam barrentas, primeiro até a altura da cerca dos fundos, depois encobriam as bananeiras, vinham subindo até o quintal, entravam pelo porão inundando tudo. Mais de uma vez no meio da noite, o volume do rio cresceu tanto que as famílias defronte tiveram medo. Então vinha todos dormir cá em cima, na casa dos meus avôs, a quem chamávamos de “madrinha” e “padrinho”. Isso era para nós uma grande festa. Aquela faina de arrumar as camas com colchões jogados pelo meio da sala, aquele intimidade improvisada e alegre, numa algazarra que fazia prolongar a noite. Parecia que as pessoas ficavam todas contentes, riam muito; como faziam café e se tomava café, biscoitos de vento, até tarde da noite, entre causo e histórias de Saci Pererê, bruxas, mulas sem cabeça, príncipes e princesas de castelos encantados e distantes. Ah! Como sonhávamos de olhos abertos e nos emocionávamos numa felicidade sem fim, esquecendo-nos das enchentes dos rios lá fora!

Ainda lembro-me muito bem, que nós os meninos, torcíamos muito para que o rio subisse mais e mais. Sim, éramos a favor das enchentes e ficávamos tristes de manhãzinha quando mal saltando da cama, íamos correndo espiar o nível do rio que abaixara meio metro. Aquilo para nós era uma traição, uma fraqueza do rio. Às vezes chegava alguém a cavalo vindo de longe, dizia que lá pra cima, no alto das invernadas, tinha caído muita chuva muito forte e que isto anunciava muita chuva nas cabeceiras da serra, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez acontecer e queríamos que aquela fosse a maior de todas as enchentes, assim podíamos ficar mais tempo todos juntinhos.

E nesta manhã as trovoadas que se misturaram ao meu sonho, naquele antigo quarto da fazenda, tiveram o mesmo ronco prolongado dos morros da minha infância diante de duas janelas que davam para o terreiro, onde se avistava o majestoso pé de jabuticabas. Senti de olhos fechados, e ouvi com o fundo da minha alma os prolongados e graves trovões no céu de São Paulo, os quais me pareciam familiares como os de antigamente. Os trovões da minha infância que preenchiam os morros e as grotas da nossa serra encantada. Os trovões da minha infância que preenchia o meu coração, o qual parece nunca ter deixado de ser menino. Os bons e pesados trovões, do nosso velho e bom São Pedro!

Paulo Del Ribeiro
Enviado por Paulo Del Ribeiro em 22/04/2012
Reeditado em 21/10/2016
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