O Tapir e a Boiuna
Depois que Guaraci, o Sol, saiu do zênite do céu azul anil e caminhou lá para o fim das matas, lá onde o mundo se acaba, toda a selva mergulhou no torpor da “siesta”. Os habitantes da floresta dormitavam onde melhor se acomodassem. Os bichos de asa, araras multicoloridas, verdes papagaios, curicas bicolores, tucanos e até a majestosa harpia desceu do meio das nuvens e procurou um galho para cochilar. Sanhaços, bem-te-vi e o nobre uirapuru oscilavam nos galhos, sonolentos. Os bichos de pelo de todas as espécies e tamanhos afofavam folhas secas, musgos e gravetos para melhor se acomodarem no frescor da floresta a fim de fugir da canícula do meio-dia. Nem mesmo os barulhentos macacos guaribas e barrigudos, sempre agitados, agora rendidos aos encantos da “siesta”, quedavam-se quietos e cochilavam em seus galhos preferidos.
O silêncio do início de tarde na mata somente era quebrado pelo estrondo de um jabuti de quatorze malhas, muito procurado para mandingas e encantos, que, aperreado, tentava engatar um namoro muito difícil com uma jabota no cio. Porém, a fêmea logo se encolheu dentro do casco frustrando o arroubo romântico do enorme macho que sem alternativa, também se recolheu dentro do casco. Logo depois o silêncio e a calma reinaram soberanos por todos os confins da mata e nos leitos dos rios, igarapés, igapós e lagos. Ficou somente o canto estridente das cigarras que tolamente cantavam até rachar as costas.
A onça pintada, de hábitos noturnos, de vez em quando bocejava preguiçosamente enquanto abanava a calda para afastar um mosquito inoportuno. Perto dali, os pequenos macacos-prego e soins empoleirados nos galhos de uma ingazeira, entorpecidos pelo sono da “siesta”, catavam parasitas uns dos outros. Um olho fechado pelo sono o outro de vigília na onça lá embaixo.
Nas fraldas da floresta, o Rio Guaporé deslizava mansamente suspirando uma leve brisa que se imiscuía por entre troncos, folhas de tajá, fetos de palmeiras e samambaias, galhos e folhas, cipós e trepadeiras, refrescando o mormaço que exsudava da mataria quieta.
No leito do majestoso rio, deslizando mansamente por entre talos de canaranas e raízes de aguapés que coalhavam o fundo arenoso de uma pequena praia, uma sucuri matrona espreitava as frinchas abertas no dossel da mata ciliar.
Àquela hora do dia, tempo mormacento, preguiça reinando, muitos dos habitantes da mata, como veados, capivaras, cutias, tatus, pacas e até algumas antas, bicho grande e forte, às vezes apareciam para matar a sede.
Chegavam desconfiados com orelhas estalando de tensão e narinas infladas testando os cheiros da margem do rio. Os olhos irrequietos com movimentos aparentemente impossíveis cobriam trezentos e sessenta graus de vigilância ininterrupta.
No entanto, a boiuna, muito velhaca, sempre buscava mimetizar-se no fundo arenoso coberto de folhas em decomposição. A cabeçorra da sucuriju, coberta de horrendas cicatrizes de incontáveis batalhas, ela camuflava rente a algum tronco meio submerso. Essa tática quase sempre era acertada. A presa, sedenta, preocupava-se com os predadores que atacavam pelo alto e pelo solo, nesse caso, o resto dos sentidos concentravam-se no rio, mas somente para aplacar a sede. Os reflexos do sol confundiam os olhos recém-saídos das sombras da floresta.
Para quem se aproximava do rio rente ao solo, o lusco-fusco do jogo de luz e sombras dos galhos da mata ciliar camuflava a cabeça monstruosa da boiuna que assumia a aparência de um toco qualquer.
Coisa normal no leito de todos os rios amazônidas.
Naquele dia, a sucuri esperava apanhar uma presa de porte considerável. Para tanto, enroscara a ponta da cauda na raiz grosa de uma frondosa piranheira. Depois de firmemente engatada na raiz, a boiuna afundara o corpo descomunal de quase sete metros de comprimento, no meio das folhas e galhos que atapetavam o fundo arenoso da prainha. Rente à flor d’água, somente os olhinhos hipnotizantes e as pontas da língua de forquilha afloravam do espelho líquido.
A maior virtude da boiuna era a paciência. Vieram ali, pertinho da bocarra, apetitosas cutias e gordas pacas. Uma capivara grande e cevada viera também, porém, muito matreira, desconfiara daquele tronco liso sem um musgo sequer e que além de tudo ainda ostentava dois furinhos que de vez em quanto abriam e fechavam sempre fixos nela. Não deu outra, a velhaca da capivara dera meia volta e fora aplacar a sede em outra praia.
A boiuna não mexera um músculo sequer. Afinal, era tronco caído no fundo do rio. Além do mais, a manhã e o meio do dia fora e ainda estava muito quente. Mais cedo ou mais tarde uma presa a altura do apetite da enorme sucuri viria beber, ao fim e ao cabo, não era à toa que a margem da pequena praia estava sulcada de rastros de todos os tamanhos. Tinha, inclusive, rastro fresco de um tapir. Quem sabe o tapir não apareceria naquela tarde para matar a sede?
As pontas da forquilha da língua do ofídio dantesco vibraram abrindo pequenos círculos na superfície calma do rio quando ela percebeu a pisada macia do tapir sobre as folhas secas que forravam o solo da selva. O sistema de identificação do cérebro da predadora classificou com precisão o andar cauteloso e pesado da anta. O requinte da percepção da língua do ofídio colossal captou até o leve resfolegar da tromba do tapir. Não existia a menor dúvida. A presa que se aproximava era o prêmio máximo para as horas de paciente espera.
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O tapir passara a madrugada inteira pastando. A anta, apascentada e satisfeita sob o calor opressivo que a mata exsudava, procurara uma moita grande o suficiente para ocultá-la das onças pintadas e panteras negras, únicos predadores capazes de fazer frente à sua força descomunal. Dentro da mata, afora os jaguares, nenhum outro animal tinha porte o suficiente para fazê-la temer o enfrentamento. Animal arisco e retraído por natureza, ainda que de índole dócil, o tapir somente saia de sua pachorra à época do cio, aí sim, os machos na disputa pelo privilégio da procria entravam em combates colossais, e durante essas brigas insanas, abriam clareiras enormes no meio da floresta. Durante essas lutas memoráveis, nenhum animal de grande ou menor porte ousava se aproximar dos contentores, nem mesmo onças e panteras, rainhas incontestes de todas aquelas matas.
Como as moitas mais aconchegantes estavam ocupadas, ora por um veado galheiro, ora por um gato maracajá ou por uma jiboia ou mesmo por uma jararaca-pico-de-jaca, o enorme ruminante procurou aconchego no oco de uma Sapopemba. O tapir já estava deitado, meio enrodilhado e entrando numa espécie de torpor com o corpo tomado pelo sono da “siesta” quando sentiu a língua arranhando o céu da boca como se fora uma lixa. A garganta seca dificultava a respiração, sinais evidentes de uma sede abrasadora. Com um enorme esforço, o quadrúpede levantou e saiu de dentro da Sapopemba em direção ao doce odor de água doce e fresca que emanava do Rio Guaporé ali perto.
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A boiuna retesou todos os músculos e fez pressão na ponta da cauda firmando ainda mais o corpo na raiz da piranheira. As pontas da forquilha da língua vibraram abrindo vários círculos na superfície lisa do manso rio.
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Com as orelhas estalando e a ponta da pequena tromba ondulando em todas as direções para pressentir qualquer perigo iminente, todos os sentidos do tapir estavam em estado de alerta total.
Muito cedo a anta farejara o odor nauseabundo de um jaguar. A atenção teria que ser redobrada nos desvãos das moitas e nos galhos que formavam um corredor na senda que conduzia ao rio. Toda a atenção de seus sentidos ainda seria pouca. Dependendo da fome do felino, as chances de escapar sem ferimentos graves eram remotas. O melhor mesmo era ter ficado dentro da Sapopemba, mas a sede era infernal. O pasto no barreiro era gostoso, porém, o sal contido no barro sempre dava aquela sede abrasadora. Embora perigoso, era imperativo caminhar para o rio e matar a sede que o calor mais que multiplicava.
O frescor das águas se espraiava por toda a margem do rio, especialmente na pequena praia coberta pelas sombras dos galhos da mataria que se debruçava por sobre a areia alva.
O tapir sentiu um arrepio de prazer quando mergulhou as patas dianteiras nas águas da pequena praia.
Cautelosa, levantou a cabeça, esticou a pequena tromba e arrepiou os pelos da ponta do focinho sondando a brisa do rio e as vibrações dos galhos que se debruçavam sobre o barranco, a praia e cercanias.
Nenhum perigo aparente.
Os olhos míopes sondaram a superfície do rio sem nada ver. O mosaico de cores, luzes e sombras mais confundiu que advertiu o tapir de algum perigo iminente. Ainda desconfiada, a anta apontou a extremidade da tromba para o espelho d’água da praia. Os pelos sensitivos do focinho indicaram resquícios de perigo, mas a garganta sedenta afastou qualquer outra preocupação que não fosse a de aplacar a sede abrasadora.
O tapir adentrou mais um pouco na água.
A boiuna recolheu a língua e se contraiu no fundo do leito raso preparando o bote.
O tapir bebeu mais água avidamente.
Um barulho inesperado a alguma distância.
A anta levantou a cabeça, esticou a tromba e eriçou os pelos do focinho perscrutando o ambiente.
Uma ariranha boiou poucos metros do tapir com um tucunaré entre as patas, a cabeça decepada do peixe jazia entre as presas da onça do rio.
O tapir reconheceu o vulto da lontra e sentiu o cheiro de sangue fresco do peixe. Concluiu que não corria nenhum risco.
A boiuna ficou mais tensa. Achou melhor antecipar o bote. Vai que a presa se assusta e dá um pinote fugindo dali. Não! Melhor ficar na encolha. Os olhos fixos no tapir. A imagem do ruminante distorcida pelo translúcido da água preta do Rio Guaporé.
Num dos galhos da piranheira um macaco soim, sonolento, meio que dormindo meio que observando o tapir na sua cautela, sem ver a boiuna, displicentemente jogou um fruto perto da cabeça da sucuri.
Apreensão dos dois lados. A boiuna temendo perder a presa. O tapir temendo uma possível ameaça.
O sagui se recostou melhor na forquilha onde estava sentado, grunhiu satisfeito, fechou os olhos e dormiu de vez.
As narinas do tapir captaram o odor almiscarado do macaco soim e, já saciada da sede, resolveu dar um mergulho nas águas frescas do Rio Guaporé.
Neste momento a ariranha viu a boiuna armando o bote fatal.
O tapir não viu, só pressentiu a ameaça.
A cabeçorra da boiuna, rápida como uma flecha, surgiu do fundo arenoso da pequena praia.
A ariranha sem uma marola sequer, largou a carcaça do tucunaré e mergulhou sumindo nas águas. Foi boiar no meio do rio, onde mergulhou novamente para ressurgir rapidamente na outra margem e desaparecer por entre as galhadas.
O tapir, desesperado, fincou as patas traseiras no leito arenoso e tentou voltear as pernas dianteiras na direção da mata em busca de refúgio.
As presas da boiuna fecharam-se em torno da cabeça do tapir. A tromba da anta entalando a garganta da sucuri.
As presas, como se fossem tenazes implacáveis fixaram a cabeça do leviatã na cabeça da anta. Todo o corpo da cobra transmudou-se em uma tromba absurda, surreal.
O silvo de satisfação da boiuna pela iminência do sucesso da caçada misturou-se ao guincho desesperado do tapir que a seguir bufou com o esforço desprendido para fixar as patas no solo arenoso na tentativa de fugir da morte certa dentro da água.
O barulho da luta despertou o macaco soim tão abruptamente que o pequeno sagui despencou do galho da piranheira. Caiu em cima da cabeça do tapir, de frente para os olhos frios, opacos e implacáveis da boiuna.
O sagui de olhos arregalados, pelos eriçados e calda tesa, guinchou de puro terror.
O macaquinho não precisou nem pular e nem correr, o movimento de ataque e defesa das cabeças dos oponentes o jogaram longe, bem longe, no meio da mata, em cima de uma moita de espinho unhas-de-gato para desespero maior do pequeno animal.
Na beira do rio o tapir conseguiu sair da praia e fincar uma das patas traseiras no início do barranco que bordejava a selva.
A boiuna ficou com o corpo estirado, vibrando pelo esforço dispendido.
A raiz da piranheira estalou.
A ponta da calda cedeu algumas polegadas.
O tapir aproveitou a pequena vantagem e forcejou para trás.
A boiuna sentiu o corpo se adelgar, afinando pela força do tapir que recuava polegada a polegada barranco acima.
A raiz da piranheira não quebrou, aguentou o repucho.
O barranco cedeu um pouco.
As pernas traseiras do tapir escorregaram cedendo terreno.
A boiuna sentiu uma pequena vantagem. Aproveitou para enrodilhar mais ainda a ponta da calda na raiz. Sentiu novo tranco.
O tapir escorregou, mas as patas dianteiras se firmaram em sólidas raízes.
Impasse.
O barulho da luta acordou a passarada que por sua vez acordou os bandos de macacos guaribas e barrigudos e assanharam os macacos soins nos galhos de um biribazeiro carregado de frutos. Araras guincharam com estridência e socós martelaram alvoroçados. Um sapo cururu-tei-tei aturdido no rebojo de águas revoltas pela luta coaxou alto como se fora um bumbo.
O coitado do sagui contribuiu com a algaravia gritando de dor na tentativa de livrar-se dos espinhos na moita de unhas-de-gato.
O bafo fétido da boiuna sufocou o tapir que soltava bufos abafados de dor.
A boiuna silvava com o esforço da luta e o tapir tentava respirar ar puro. Vã tentativa, somente aspirava ao fétido odor das entranhas da cobra.
Sem ar e exaurido pelo esforço descomunal o tapir sentiu que as patas traseiras fraquejaram, depois sentiu que as raízes antes firmes agora rotas, desfiguradas que ficaram pelas afiadas unhas das patas dianteiras não ofereciam mais o apoio necessário para aguentar a pressão do inusitado cabo de guerra.
A boiuna acusou a pequena vantagem cedida pelo tapir que sentiu a água banhando a barriga. Desesperada, a anta ainda tentou livrar-se da boca que lhe obstruía a respiração balançando a cabeça de um lado para o outro, porém, as patas afundaram no leito arenoso, o que proporcionou à boiuna carregar o tapir para o fundo do rio.
Sentindo que o tapir não oferecia mais resistência, a boiuna soltou a ponta da calda da raiz submersa e enrodilhou completamente a presa exangue. O rebojo na água formado pela boiuna asfixiando o tapir rebombou por toda a margem do rio alvoroçando mais uma vez o passaredo e a macacada. Uma cacofonia de bater de asas, gritos e agito de galhos ecoou pelo Rio Guaporé.
A boiuna depois de um tempo no fundo do rio, boiou enrodilhada no tapir. Depois, vagarosamente deslizou em direção a toca localizada num barranco circunvizinho à praia puxando a presa com os ossos completamente triturados.
Bem instalada na toca, o viborão se esticou com a bocarra escancarada e lentamente começou a engolir o tapir.
O silêncio voltou àquelas paragens ribeirinhas. Silêncio que foi quebrado pelo grito de alegria do macaco soim que finalmente conseguira livrar-se do último espinho de unha-de-gato entranhado próximo aos órgãos genitais.
Lá no meio da mata, no alto do galho de uma árvore seca, acinzentada pelas intempéries, um Urutau piou lugubremente. O sol se aproximava do horizonte, a rotina na mata há tempos voltara. Alguns bandos de papagaios cantavam de volta aos ninhos saudando Jaci que surgia cor de prata no outro lado do rio.
Um antigo adágio ribeirinho diz que lá alto do Rio Guaporé, quando um Urutau canta de dia, bicho grande já morreu ou vai morrer em breve... Na beira do rio.