Burocracia

É verão.O sol ofusca a visão dos transeuntes que, alegremente, se dirigem à praia.Com seus maiôs multicoloridos, eles são a imagem da alegria.Cruzam, recruzam a areia quente. Desviam-se dos guarda-sóis que ensombream o corpo branco-leitoso de ruivas sardentas que se refugiam, temporariamente, dos raios de sol.Tudo ali cheira à alegria.Ora o som de um CD que invade os tímpanos, ora os gritos monótonos e repetitivos dos camelôs de praias;ora a troca de olhares e beijos de casais enamorados; ora o correr de crianças que se dirigem barulhentas à água do mar.Mansas ou agitadas, as ondas abraçam quem as procura. Ali, tudo cheira à alegria.

Lá, mais além, onde a alegria não chega com sua inebriante magia, está Seu Vitório.Ali é a fila quilométrica da repartição responsável pela Saúde Pública. Lá há sombra e sol. Não sombra de guarda-sóis coloridos e nem raios de sol praiano que atingem os corpos misturados à maresia, corpos com gosto de sal.É sombra do edifício sombrio.Guarda rostos sombrios que se escondem à sombra de sombrias esperanças dos que esperam à fila.É sol que arde as cabeças já ardentes de problemas, ardentes de febre que consome corpos doridos, doentes, que buscam ardentemente a saúde.Sombra e sol - desespero e esperança.Ali está Seu Vitório à cata de solução para o seu problema.

A serpente formada de miríades de cabeças doentes se arrasta demoradamente.É a fila para a Saúde Pública.Olhos miúdos, apertados, espreitam cheios de conformismo.Olhos graúdos, arregalados, desesperados, cheios de aflição.Ali há de tudo.Ali falta tudo.Ali não há quase nada.A serpente se arrasta.Demoradamente.Chega a vez do Seu Vitório.A quarta vez que ali se enconta em dois meses, lutando em busca de um tratamento para suas mazelas do corpo.As da alma já desgraçam porque lhe matam a esperança.Mas ali está ele de novo.Aproxima-se do guichê onde um funcionário loiro, de cara amarrada, não levantava as vistas para ele e nem respondia ao seu tímido bom-dia.Diz-lhe, com voz gutural:

- O próximo.Os papéis.

Seu Vitório estende a mão, timidamente.Enquanto o funcionário mal-humorado folheia os papéis, Seu Vitório tamborila fracamente os dedos no balcão:

-Falange, falanginha, falangeta...Falange, falanginha, falangeta...- continua ele, repetindo as mesmas palavras para disfarçar sua tensão.Lábios mudos,sem um murmúrio sequer.Lábios trêmulos.

-Moço! - a voz do funcionário.- Esses papéis não estão corretos.São outros formulários.Dois amarelos, papel timbrado.

-Amarelos?- indaga acanhado Seu Vitório, que também ficou mais amarelo. - Ora, na outra vez que aqui estive, trouxe justamente os amarelos timbrados e fui informado de que não eram os corretos.Indicaram-me estes.

-Eu disse isso ao senhor?

-Não, na verdade, foi uma moça.Uma moça morena.

O funcionário coçou a cabeça.Moça morena? Havia muitas delas trabalhando ali. Mas isso não vinha ao caso.

-Sinto muito, Seu...

-Vitório- respondeu o desesperado homem.

-Pois é, Seu Vitório.O caso não é comigo.É exigência da repartição. O senhor sabe...

Sim, ele sabia.Sabia também que teria que aguardar mais um mês para conseguir marcar outros exames. Teria que aguardar vaga.Aí, então, é que teria, em mãos, os formulários amarelos.

Saiu decepcionado, mais uma vez.Olhos ansiosos que formavam a serpente que, sinuosamente, já se arrastava pelas calçadas do prédio da repartição o observaram.Cada cabeça aguardando sua hora.

O verão passou e também o outono.Quando o inverno despontou, encontrou Seu Vitório, outra vez na fila, naquela instituição.Mais magro, olhos fundos, cadavérico.Mais amarelo e tendo às mãos, formulários amarelos. Todo o processo burocrático se repetiu.Chegou a hora e a vez dele.

Outro funcionário foi quem atendeu.Não viu o loiro.Não viu a morena.O empregado olhou os papéis, demoradamente.

-Tudo em ordem,"tio".Vamos ver quando haverá vaga para marcar os últimos exames. Deixa ver... - soltou fumaça de cigarro em cima do Seu Vitório, que pigarreou.- Ah, sim, aqui está.-Rabiscou com a caneta um papelzinho e o estendeu ao homem que esperava. - No próximo verão- riu o funcionário.

Seu Vitório arregalou os olhos:

-Mas ainda está tão longe!Não posso esperar tanto...Sinto-me muito mal.

-Que é que posso fazer "tio"? - soltou mais fumaça.- "Soldado mandado não tem crime..."- filosofou.

Seu Vitório baixou as vistas.Não tinha forças para discutir, reivindicar.Esperaria o verão.

Ao passar pela fila, alguém que ouvira o diálogo sentiu a dor do Seu Vitório (ainda há alguém, embora raro, que sente a dor dos outros).Fulminou com um olhar o funcionário em questão e murmurou:

-Porco chauvinista!

Quando o verão chegou, o sol ofuscava de novo a visão dos transeuntes que, alegremente, se dirigiam à praia com seus maiôs multicoloridos.Porém Seu Vitório não mais o viu.Antes do verão chegar, Seu Vitório morreu.Vitório que não teve vitória.A burocracia o matou.

No entanto,o sol continuou a brilhar. O canto repetitivo dos camelôs de praia ainda soava nos ouvidos dos banhistas.Há quanto tempo Seu Vitório fora à praia!Agora, então, era tarde.Seu tempo passou...Ah, o tempo,essa incógnita...

No mesmo lugar, na mesma repartição, a fila continuava a crescer, obedecendo rigorosamente a leis da burocracia.Alguém ocupou a vaga do Seu Vitório que sofreu no anonimato e no anonimato perdeu a vida.Fora mais uma das vítimas da burocracia.

Nadir de Andrade
Enviado por Nadir de Andrade em 28/01/2007
Código do texto: T361581