Caco Véio
Caco Véio era uma mendigo inofensivo. Vivia pelas ruas, sempre cercado de viralatas, pedindo dinheiro para quem passasse na sua frente. Que invariavelmente torrava em cachaça e cigarros baratos. Comida ,pegava no prédio da APAE no sopão das duas da tarde, fora os pães adormecidos que os padeiros davam no princípio da noite.
Inofensivo sim, porém um chato com suas histórias de quando – dizia ele – jogava bola no Ferroviária e no XV de Piracicaba. Eram histórias de gols miraculosos, de jogadas geniais, de mulheres que depois das trepadas levaram todo seu dinheiro, de homenagens dos dirigentes que a turma ouvia e fingia acreditar. Quando cansavam da conversa mole davam mais uma nota para ele calar a boca e ir contar vantagem em outras freguesias. E ia, sempre sabendo quando sua presença tinha ficado inconveniente.
Certa tarde, fuçando na biblioteca municipal em busca de informações para uma pesquisa, encontramos alguns jornais antigos, da década de 70, e numa das páginas de esporte vimos a foto de um jogador negro, levemente parecido com o Caco Véio. A reportagem afirmava que Titico, o jogador, era um craque da bola e tinha salvo o XV de uma derrota para o Santos com três gols nos últimos 15 minutos de jogo, numa virada espetacular.
Claro que podia ter sido o Caco. Mas como alguém que ocupara uma primeira página de jornal podia acabar como esse traste que todo santo dia pedia grana para tomar pinga? Como alguém que havia sido amigo de prefeitos e autoridades era acompanhado hoje apenas de cachorros viralatas espalhando pulgas nas calçadas?
Na sexta nossa turma se reuniu para o casamento de Juliana , irmã de Caio, com um carinha da Capital. Seu Irineu não poupou esforços nem grana para a festa da filha. Alugou o Shangrilah, um salão enorme, contratou os Pedras Românticas para a animação, lotou os frezers de cerveja da melhor qualidade e convidou quase meia cidade.
A gente sabia que o Caco ia aparecer para filar umas cervas e uns salgadinhos. Sempre ia e foi por isso, para não estragar a festa com sua presença fedida e seus cachorros que levamos ele para um salão de barbeiro. Devidamente barbeado e cabelos aparados compramos do Meque um terno de segunda mão, demos um banho de perfume, todos rindo por dentro,pensando se os convidados iriam reconhecê-lo quando transitasse pelo salão. O Júnior até comentou que ia rir muito se alguma velhota assanhada da sociedade não o carregasse para a cama e desse uma trepadinha atrasada, sem saber que o autor da foda era o velho Caco .
É. A gente ia rir muito quando revelasse depois. Principalmente se fosse alguma daquelas que viviam enchendo o saco da gente chamando a polícia quando nossas farras passavam do limite.
Todos postados no alto da escadaria da Matriz, o Caco misturado com os convidados, a noiva desceu do carro acompanhada de duas daminhas de honra e seu Irineu à tiracolo, os comentários à meia voz falando da beleza de Juliana e sua sorte em casar com rapaz tão promissor, quando os cachorros apareceram.
Ninguém tinha reconhecido o mendigo em trajes tão finos, mas os cães sim e vieram em tropa rumo a ele. A mulherada gritou de medo, a gente tremeu em silêncio pensando na bronca, alguns dos homens mais corajosos tentaram espantar os animais com pontapés, mesmo assim todos subiram a escadaria .
Minto. Todos não. Um dos cães estacou no penúltimo degrau. Feridas expostas no corpo todo, tremendo de medo e dor, a baba caindo da boca melecando o chão. Não era dos maiores, mesmo assim um tamanho respeitável e nós, nos afastando vimos ele rosnar e aprontar o bote para uma das daminhas, que ficara paralisada de medo.
Ninguém se moveu e poucos viram, eu um deles, o Caco sair do meio da multidão amedrontada e voar, literalmente voar, quando o animal pulou sobre a menina. Engalfinhados os dois, Caco e o cão, rolaram pela escadaria de vinte degraus até o chão e mesmo morto, a cabeça partida no choque nos degraus, segurando o cão que, desesperado, mordia seu braço tentando escapar.
A polícia deu um tiro certeiro, os corpos dos dois foram recolhidos e o casamento continuou depois do susto.
Na festa, depois do corte da gravata do noivo e arrecadados quase cinco mil, alguém sugeriu( não me lembro quem) que devíamos usar metade da grana e construir um túmulo digno do heroísmo de Caco.
Todos concordaram, até a Juliana que herdara um pouco do munhequismo do pai, alguns dos convidados doando um pouco mais, na mistura chocha de sentimentalismo e álcool.
Hoje faz uma semana que tudo aconteceu. Estou defronte à cova rasa onde jaz o corpo de Caco Véio, um princípio de remorso me corroendo por dentro e um ramalhete de flores na mão. Depositei as flores, fiz uma oração rápida e fui tomar uma cerveja no Alemão.
Porque não fizemos túmulo merda nenhuma.
Na segunda feira apanhamos umas putinhas que vivem dando mole pela cidade , compramos um monte de bebidas e drogas e rumamos para a chácara do pai do Júnior. Foi uma noite memorável. Todo mundo comeu todo mundo e a grana arrecadada, toda ela, foi torrada no vão das pernas da mulherada. Quer túmulo melhor que uma xoxota de biscate? comentou alguém da turma. Não sei quem.
E mesmo eu, que gostava um pouco do mendigo gritei um “ Essa é pra você, Caco Véio!” enquanto comia o rabo de uma putinha em homenagem.