O Décimo Segundo Andar

O condomínio Morada dos Rios é composto por dois prédios de doze andares, com quatro apartamentos por andar. Fica localizado na zona sul da cidade e seus moradores fazem parte da classe média. Rio São Francisco e Rio Amazonas são os nomes dos edifícios. O Morada dos Rios é uma construção de estrutura moderna, e tem vinte anos que foi construído. No décimo segundo andar do bloco Rio São Francisco moram quatro famílias desde a inauguração do condomínio. São os moradores mais antigos. No 1201 mora uma advogada chamada Tatiana e sua filha Aurora, ninfetinha provocadora de 16 anos. Antes, quem morava lá era a mãe da Tatiana, Dona Hercília, uma idosa, de setenta e poucos anos. Ela morava sozinha e Tatiana, ainda solteira e sem Aurora, vinha visitá-la com muita assiduidade, depois de algum tempo as visitas foram rareando, até que encerraram. Quando ela faleceu fazia sete meses que não era visitada por sua filha. Ninguém sabe dizer o que causou o fim das visitas da filha à mãe, alguns falavam que Tatiana tinha mudado de cidade, outras diziam que foi uma briga séria que elas tiveram. Provavelmente foi um desentendimento; quantas mágoas e amarguras se escondem num relacionamento de uma mãe com uma filha? Ninguém sabe ao certo. O certo mesmo foi que a coitada da velhinha foi encontrada morta pela faxineira, numa segunda-feira. Morreu dormindo, parece que estava morta desde sábado, o futum que saiu do apartamento quando ela foi retirada era nauseante. O curioso é que nenhum dos outros moradores se deu conta da ausência de Dona Hercília naqueles dois dias. A filha foi morar no apartamento três meses depois do funeral. Dois anos depois nasceu Aurora. Tatiana nunca se casou, foi produção independente. No 1202 mora o maconheiro, o nome dele é Lourival, ele é de poucas palavras, educado e culto. Ele é arquiteto, divorciado, tem uma filha de 25 anos que mora em outro estado e que vem visitá-lo no natal. Atualmente ele tem uma namorada que dorme no apartamento algumas vezes na semana. Ele faz reuniões com os amigos quase todos os sábados. Começa duas, três horas da tarde e se estende pela noite até a madrugada. O burburinho é animado, o som é de qualidade e não incomoda ninguém. Nestes sábados, ou melhor, nos fins de semana, ele parece usar outro tipo de droga além da olorosa canabis, insinuam isso devido a sua gripe crônica que se intensifica aos domingos. No 1203 mora o pastor Nemias. O pastor é um homem grandalhão de quase dois metros de altura, falante, inteligente e erudito. Ele é de Brasília e mora na cidade há vinte anos. Veio para comandar a Igreja Presbiteriana Renovada. Das igrejas evangélicas, igrejas protestantes, como se dizia antigamente - parece que o termo protestante caiu em desuso -, a Presbiteriana é uma das menos populares aqui no Brasil, e talvez por isso, tenha se “renovado”. A Batista é mais popular do que a Presbiteriana, porém, ainda é muito menos popular que A Assembleia de Deus e a riquíssima e poderosa Universal do Reino de Deus que domina toda a periferia e a pobreza das grandes e pequenas cidades. As igrejas vivem se renovando na tentativa de não perderem seus fieis, isto acontece desde a época de Lutero, cada um puxando a sardinha, as ovelhas, o rebanho, para o seu lado. Uma grande mudança também aconteceu na tradicional e dita imutável igreja Católica. Do final dos anos setenta até os dias de hoje ela vem revendo suas rigorosas doutrinas. Há quarenta e poucos anos não se admitia missas católicas com músicas de louvor a Jesus, pessoas dançando, cantando e batendo palmas, isso era coisa de crente fanático. Com o crescimento das igrejas evangélicas, que começaram a arrebanhar os fieis desgarrados e desgostosos com a Igreja de Roma, a religião oficial do país se viu num dilema, ou mudaria ou correria o risco de definhar até a morte. Mudou, e remodelou sua liturgia. Resolveu rever o formato de suas missas, reavaliando o modo de se dirigir aos seus seguidores, deixando a formalidade de lado e conversando com mais espontaneidade com seu público. Começaram a pregar missas muito parecidas com os cultos evangélicos, sem deixar de lado a maioria dos seus dogmas mais tradicionais, ocorrendo o surgimento de padres cantores, verdadeiras estrelas pop da evangelização. Dessa forma conseguiram frear, um pouco, com a debandada dos fieis. Pastor Nemias conversava qualquer assunto, de música a política, mas gostava mesmo era de falar de futebol. Botafoguense doente, não perdia um jogo do glorioso. Também não perdia a oportunidade de soltar alguns excertos bíblicos em ocasiões apropriadas. Sempre se vestia de ternos bem cortados e de marca. Ele é casado com uma belíssima mulher de nome Noemi e não tem filhos. No 1204 quem mora sou eu e minha esposa. Nossos dois filhos são casados e vivem suas vidas sem atropelo. Aos domingos eles aparecem para filar a boia e beber umas cervejinhas comigo. Sou funcionário do correio, sou carteiro, só moro aqui por causa de minha mulher. Ela é engenheira e dona da construtora responsável pela construção e venda dos apartamentos do condomínio. Nosso apartamento é o maior do prédio e o único que tem cobertura. Sou um homem frustrado, invejoso e apenas suporto a minha companheira, mas, não a largo, “ruim com ela pior sem ela” diz um ditado popular, e eu o sigo a risca. Sou financeiramente sustentado por ela, contudo, não deixei de ser arrogante e muitas vezes sou soberbo. Tenho uma patológica certeza que todos vivem suas vidas em função da minha. Também sou dissimulado, claro, não saio por aí, a torto e a direito, destilando meu recalque, ou falando mal das pessoas, não sou burro, não quero arrumar inimigos explícitos, e por isso ninguém desconfia do desprezo que sinto por todos, inclusive de mim mesmo. Trato muito bem as pessoas, inclusive as que eu mais detesto e invejo. Sou muito bem apessoado e dou muita sorte com as mulheres, elas sempre quiseram tomar conta de mim, que sempre pareci a elas desamparado como um bezerro desmamado. Logo que vim morar aqui eu cismei com o Lourival, o maconheiro do 1202, achava a vida dele muito estranha, meio misteriosa, e enfiei na cabeça que ele era traficante de drogas. Ele passava a maioria do tempo fumando bagulho, saia pra trabalhar só no período da tarde e dia de sexta-feira ele só saia de casa a noite. As festas que ele dava no sábado a tarde tinha uma movimentação estranha, sempre chegava e saia gente esquisita de lá. Ele andava num carro popular do ano e mostrava estar crescendo em seu trabalho. Resolvi segui-lo. Durante três meses fiquei no pé do maluco beleza, sem que ele percebesse, o que não era difícil, ele quase sempre estava sob o efeito, deixando-o muito relaxado para suspeitar que estivesse sendo vigiado. Depois desses três meses percebi que a vida dele era absolutamente normal, como de qualquer outra pessoa. Tirando as drogas que ele usava, poderia dizer que ele tinha uma rotina bem sem graça, enfadonha mesmo. Toda tarde ele ficava no seu escritório, num edifício no centro da cidade e só saia de lá por volta das oito da noite. Atendia os clientes e fazia visitas em obras. Era ajudado por dois outros arquitetos recém-formados, que ficavam responsáveis pelos períodos que ele não comparecia. Pelas manhãs ele trabalhava em casa fazendo seus projetos. Só consumia álcool a partir das sete horas das sextas-feiras, no mesmo local, um barzinho sofisticado na praia 13 de julho. Acabei descobrindo que o maior segredo dele era não ter mistério algum. Nem mesmo a porra que ele fumava e cheirava, que são substâncias tóxicas ilegais, ele fazia questão de esconder, apesar de não fazer apologia. E definitivamente ele não era traficante, não o vi em momento nenhum vendendo drogas, ele ganhava dinheiro honestamente. Mesmo assim, até hoje tenho o pé atrás com o Lourival, pra mim drogado é sempre suspeito, e se não fez merda na chegada vai fazer na saída. Do pastor eu sempre gostei. Conversávamos por muitas horas no playground do prédio sobre religião. Eu gostava de ouvir as estórias da bíblia, dos profetas, aquelas conversas sobre Deus e a criação do mundo me fazia viajar. Sempre me declarei ateu, sadio então, meu ateísmo era eloquente. Porém, basta eu adoecer ou passar por uma situação aflitiva e perigosa que logo vem em minha cabeça à expressão “oh meu Deus me ajude!”, e peço ajuda sem nenhum pudor, depois de resolvido o problema eu volto a zombar dos que acreditam no criador. Penso que isso também aconteça com alguns que creem em Deus, que também só lembrem ou pensem Nele quando estão em apuros. Contrapondo-se ao meu ateísmo, graças a Deus, a verdade é que eu sinto certa admiração nos que têm fé de verdade, deve ser por isso a minha simpatia pelo pastor, ele parece ser um homem de fé inabalável. Talvez só fique balançado perto da filha de Tatiana, mas, qualquer homem que goste da fruta tremeria ao ficar ao lado daquele demônio de pernas roliças e bunda arrebitada em forma de menina, principalmente dentro do elevador, quando ela fica mexendo em seu cabelo e retocando o batom de frente do espelho e olhando de esguelha pra gente e sorrindo disfarçadamente, é realmente de oscilar qualquer fé e fidelidade. Das conversas com o pastor as que mais eu aprecio são sobre filosofia, sou um grande admirador dos filósofos e o reverendo Nemias conhece muito do assunto. Incentivado por essas conversas fiz menção de começar um curso universitário de filosofia, contudo, desisti, seria cansativo demais andar pelas ruas da cidade o dia todo e ter que ir a noite estudar, era pedir muito da minha indolência. Gosto mesmo é de cultivar o ócio e jogar vídeo game nas minhas horas de folga. A Tatiana é uma advogada em ascensão, que eu tive um caso passageiro, a pouco mais de dois anos, que luta desesperadamente contra o envelhecimento e parece não se perdoar de estar afastada da mãe na ocasião de sua morte. Ela carrega esta culpa estampada em sua testa. Ela e Aurora convivem como cão e gato, vivem as turras, seguidos por breves intermitências, períodos de calmaria onde se percebe todo o amor existente entre elas. As brigas acontecem muitas vezes apenas pela competição que existe entre as duas, uma disputa velada, mas que pode ser vista em muitas circunstâncias do dia a dia, uma rivalidade inerente ao sexo feminino, que não se ameniza nem entre mãe e filha, que pode desaparecer com o passar dos anos, ou transformar-se em feridas dolorosas que nunca cicatrizam. A modorrenta rotina daqui do décimo segundo andar do condomínio Moradas dos Rios vai se arrastando assim, sem muitas mudanças ou sustos. As coisas continuam do mesmo jeito há muitos anos. Minha mulher fazendo elogios suspeitos à postura e hombridade do pastor Nemias, o pastor tentando de todas as formas levar Tatiana para a Igreja, e talvez não só para a igreja, a Tatiana se insinuando para mim, e eu fantasiando, como um velho tarado, como seria bom degustar todos os sabores juvenis da menina Aurora. A Noemi arrumando desculpas, sempre na ausência do pastor, para bater na porta do Lourival, alegando faltar algum mantimento em sua casa, e o Lourival, o maconheiro, rindo disso tudo e de todos nós, durante seus “baratos,” depois de pitar seu “matinho”, deitado em sua cama ao lado da Aurora.