Meninos de rua: o transporte
Sol escaldante do meio dia, corpos brilhando no calor de Recife. O asfalto fervia alucinando a tudo. Arrastava-me apressado para uma rua próxima ao destino final. Padecia destas enfermidades que normalmente e fatalmente não incomodam muito nossos meninos. Parecem heróis na vida iníqua a que foram submetidos. Não adoecem, simplesmente se entorpecem e voam. Voam para bem longe e para nunca mais voltar. O céu encobre suas cabeças. O céu os acolhe. Os acalanta. Os fazem dormir.
Os meninos de rua voam sabiam? Voam sim! É uma forma de transporte alucinada aquela que eles utilizam diariamente para mudar o local de sua meninice. Seguram a garrafa plástica de cola nos beiços e se vão. Zunindo ao sol do meio-dia, zooommm!!! Lá estão eles agarrados nas portas dos ônibus. Não posso dizer que são surfistas. Nunca vi ninguém pegar onda de lado da prancha. São nossos Wind surfistas. Ih! Descobrimos, é isso mesmo. Nossos Wind surfistas. Pegando a vela, ou melhor as janelas dos ônibus. Subúrbios acima, subúrbios abaixo, lá se vão nossos ébrios rebentos rasgando a capital, sem capital.
O interessante é quando os ventos não sopram verdadeiramente nas suas vidas. Dias desses vi um pequenino arretado com o motorista que não permitia mais uma ondinha. O condutor parou o ônibus bruscamente e o obrigou a descer da lateral do veículo. O pirralho não teve dúvida e lascou uma pedra na traseira do carro. Se fosse no vidro o estrago e o susto seria muito grande. E eu, que nem paguei para ver a cena, estava de lado do meu personagem. Ainda lembro dele. Sujinho na sua infância ou na sua pré-adolescência. Ainda saiu xingando e ameaçando o pobre do motorista, que por pouco são saiu com uma pedrada na cabeça.
A tristeza vem quando caem das laterais. Normalmente são engolidos por outros veículos naquele mar de asfalto fervilhando. Normalmente encontram inimizades nos passageiros que não querem suas companhias laterais. Sobem e descem embriagados e como são obrigados a descer muitas vezes com o ônibus em movimento, saem atropelando a todos. Parecem pequenos e magros projéteis passando velozmente por entre o povo.
Nesta animalesca e decadente cena vemos nossos menores correndo o risco, correndo o sol e a noite, o vento frio e a penumbra da madrugada sem eira nem beira. Sem espaço certo, sem chão. Chão garantido mesmo só depois de desencarnados, sete palmos abaixo da terra indigente. Pequenas sacolas de ossos embrulhados em ataúdes débeis de cor roxa.
Rezaram um pai nosso, duas ave marias, um creio em deus pai e saíram perambulando e reformulando os seus percursos em vida.