Uma Viagem Inesquecível
Acho que nunca antes na vida senti os efeitos de um cansaço de verdade como o que me tem abatido nos últimos dias. Contudo, sinto agora um pouco de alívio e um frescor revigorante que vem das águas do rio. É uma sensação diferente viajar de barco e, quando a maioria dos passageiros não fala a nossa língua, o conforto aumenta, pois dedicamos os momentos da viagem a nós mesmos; criamos assim nossa ponte entre o passado que tentamos esquecer para que não interfira num futuro incerto, mas pelo qual optamos, atendendo a um apelo que vem do fundo da alma. Sou professora recém formada e, optando pelo nordeste para exercer minha vocação, deixei para trás um salário estável, junto àqueles que amo, para ir a busca de um trabalho vocacional em lugares aonde mal chega a civilização, mas onde existem almas ávidas de conhecimento e de uma oportunidade.
A mistura de brasileiros e gringos chega a ser engraçada. As interjeições acentuadas e o tamanho do sorriso nos dão a medida de sua satisfação. Eu mesma, ao ver saltar na água um enorme boto, passo a ser um deles. Acostumada às grandes cidades, com suas selvas de pedra, admiro-me com o verde da mata tão intenso e tão próximo da minha visão. O ruído contínuo do motor parece ser o único som a quebrar aquela paz natural. Também não me canso, como eles, de andar de um lado para outro a procura de um melhor ângulo. As mulheres sentem o rigor do clima e põem-se à vontade; não se constrangem em imitar as brasileiras que já diminuem as peças à medida que o calor aumenta. Espelham-se nas garçonetes de sorriso largo e chapéus com fitas. Que enfiam as bandejas entre os grupos que se aninham no convés em animadas conversações; não sei como conseguem equilibrar as latas de refrigerantes e os copos transbordantes de caipirinha. A pele bem morena a exibir saúde, os shorts muito curtos, uma peça de maiô cobrindo os seios e sandálias floridas; enchem de vida o ambiente.
Encostamos-nos a uma vila de pescadores para o almoço. Já do ancoradouro úmido e balouçante avisto, ao final de uma trilha florida, ladeada de cerca viva, carregada de trepadeiras e enormes fileiras de mesas forradas de branco e as cadeiras de palha em volta, tudo sobre o chão de mármore da varanda em plano elevado. A cobertura de toldo azul protege do sol forte que faz a essa hora. Subo os degraus e me aconchego a uma das mesas. Enquanto espero, alheia ao vozerio, aprecio o ambiente. A área é desmatada. Ruas de terra se estendem ao longe e, até onde alcança a vista, casinhas baixas, quadradas, de telhados amarelos, dão ao cenário um toque de monotonia. Carroças cruzam-se umas com as outras, deixando no ar rastros de poeira branca. Há um entra e sai na peixaria em frente, de homens transportando sobre suas cabeças pesados isopores, repletos de iguarias. Enquanto estes trabalham e garantem o seu sustento, outros deixam o tempo passar, sentados, na birosca ao lado. Uns jogam a purrinha, enquanto esvaziam de seus canecos de vidro a cerveja espumante. Outros assistem à sinuca e os mais velhos reúnem-se às mesas num bate papo informal, pitando o cachimbo ou mastigando o fumo. Vez ou outra riem um sorriso sem dentes.
Como, absorta em meus pensamentos, embarcando no lusco fusco do restaurante, sem muito me importar com os inúmeros sons à volta de mim. Não compartilho momentaneamente da animação porque penso no que me espera ao fim da minha viagem. A pobreza e a simplicidade têm feito parte do meu roteiro nas últimas regiões por que tenho passado. A contemplação do belo e o contato com a magia da natureza incólume e em muitos casos intocável é o que têm atraído esses turistas sedentos de um turismo ecológico. Conversam com entusiasmo em grupos de cinco a seis pessoas em cada mesa. Os rostos vermelhos das mulheres demonstram satisfação e elas riem e se deixam contagiar pela felicidade de seus homens.
Saímos para um passeio a fim de completar os minutos livres que nos restavam. A rua principal, cheia de lojas, deve ser um chamariz para quem chega de fora. Camisas com motivos de pássaros da região, botas de caminhada, apetrechos de pescaria enchem as vitrines; cartazes anunciam descontos. A população não é pequena no lugarejo. Este pequeno centro comercial azafama e, para caminhar, temos que fazê-lo com atenção porque, mais do que pedestres, são as bicicletas que dominam os espaços num vaivém incessante. O som de suas campainhas é o alerta a nos fazer desviar o passo para o canto da calçada estreita para lhes dar passagem na rua ou pular para a rua a fim de lhes deixar livre a calçada. Assim, ganhar o interior de uma loja é a melhor saída. Foi o que me levou para dentro de uma relojoaria. As vitrines laterais expunham prateleiras repletas de objetos interessantes; dir-se-ia um paraíso de colecionadores. Eram relógios de todos os tamanhos e modelos, todos protegidos por campânulas de vidro sobrepujando plaquetinhas retangulares cor de prata, contendo informações da peça.
Ao fundo da loja, atrás do pequeno balcão, uma jovem, numa espécie de túnica branca e folgada, atende alguns fregueses, abrindo e fechando estojos, exibindo modelos que eles avaliam com o olhar ou experimentam em seus próprios pulsos. Por trás, através do amplo vidro, a visão da oficina, com suas mesas repletas de instrumentos próprios da profissão. Sentado a uma delas, um senhor de idade, envolto no reparo de um maquinário, como se mais nada no mundo lhe importasse naquele momento a não ser a peça que o intriga. É um antigo relógio do qual se destaca, em sua totalidade, o interior, com molas, eixos e outras partes totalmente desnudas. As mãos firmes do velho manipulam com calma e habilidade a diminuta chave de fenda. Muito sério e compenetrado, a pequena lupa cuneiforme presa à vista direita movimenta-se quase que imperceptivelmente para cima e para baixo ao ritmo de sua respiração. O calor intenso do ambiente fá-lo perspirar e o foco da luminária, pouco acima de sua cabeça, destaca gotículas de suor de sua testa, onde se grudam alguns fios de sua cabeleira branca.
A atendente, com cativante sorriso, após despachar os fregueses, deixou o balcão e veio ao meu encontro. Eu não pretendia comprar um relógio, mas não precisei dizer isto a ela; abordou-me com tão grande naturalidade que me fez sentir muito à vontade. Em dado momento, ao ficar sabedora do motivo da minha viagem e, principalmente, do meu destino, fez um gesto de admiração, arregalando os grandes olhos negros e correu para onde antes estava. Ali, bateu com as pontas dos dedos no vidro que nos separava do interior da oficina; com a mão, chamou o velho que já parara o que vinha fazendo.
– Adivinha, vovô! Ela está indo para Borba. Ela é professora, vovô, e está indo para Borba!
O pobre homem ficou vermelho e, por algum tempo, imóvel, olhando-me dos pés à cabeça, enquanto, em minha mente, os pensamentos eram muitos ao mesmo tempo. Passado o efeito do choque, ele abriu um sorriso, carente de alguns dentes e precipitou-se a ser amável comigo, convidando-me para a sua sala de trabalho; ofereceu-me uma cadeira e eu fiquei sabendo em detalhes a razão de sua grande surpresa e amabilidade. Deixei que falasse, sem coragem de interrompê-lo, tais eram sua alegria e entusiasmo. Ao fim de algum tempo, mostrando-se satisfeito consigo mesmo, ele voltou a fixar nos meus os seus grandes olhos; depois, disse:
– Então é isso, mocinha. Não sei se conseguirei o perdão de Jovelina, depois de tudo que a fiz sofrer. – Um ar de tristeza pairava agora em seu semblante.
– É uma situação bastante complicada, senhor Anselmo. Já imaginou o quanto ela pode estar sofrendo naquele fim de mundo? Não houve nenhuma forma de comunicação nesses quase oito anos de afastamento?
– Nenhuma. Já soube do seu paradeiro por um irmão que andou por lá há alguns anos. Reconheço que foi traição o que fiz. Mas, não sou feliz com a outra; se ao menos ela me desse uma chance... Sequer responde às minhas cartas.
Saí dali com uma carta e um presente para Jovelina. Passei o restante da minha viagem preparando-me em espírito para a nova vida que começaria a levar em Borba. Vez ou outra, vinham-me ao pensamento as lamúrias do senhor Anselmo e a alegria de sua neta, esperançosa de uma solução feliz para este caso de amor. Fora o velho pego nas garras da ilusão ao trocar a companheira de anos e uma relação matrimonial estável por uma aventura ao lado de outra mulher com a metade de sua idade; chorava agora a dor do arrependimento e do passo mal dado. Quanto a mim, precisei ficar em Manaus a espera de uma vaga em outra embarcação para a cidadezinha de Borba, meu destino final. Na manhã do terceiro dia, quando, finalmente, consegui a passagem, já havia conhecido muitos lugares interessantes e pitorescos. O hotel onde me havia hospedado ficava muito próximo de um ancoradouro e, nas minhas idas e vindas em lanchas voadoras para pequenos passeios que adorei fazer, acabei conhecendo alguém especial.
II
Era comum encontrá-lo todo fim de tarde por aquelas bandas. Sempre no mesmo local, à beira do cais, com as pernas dentro d’água, apreciando a calma do rio e o movimento suave das embarcações. A orla era repleta de lanchas para turistas, botes equipados para pesca e uma quantidade enorme de barcos de passageiros de dois ou três andares, alguns totalmente lotados, iniciando suas partidas. Quis conhecê-lo desta vez. Enquanto dele me aproximava ia imaginando o que estaria passando na cabeça deste menino cujos pensamentos pareciam ir bem longe, a quilômetros de distância. Portanto, ali estava ele. Entre nós, a estreita ruazinha e seu burburinho de todas as manhãs.
Na mesa do pequeno café tinha eu em mãos o jornal, mas não o lia, pois pensava em Vitor. Olhei a passagem e confirmei o horário: quase duas horas ainda separavam-me da minha partida. Via-se de tudo naquele pedacinho de rua que conduzia à pequena ponte de madeira que se ligava à estação portuária: mulheres sustentando enormes barrigas à beira do parto de um ou acolhendo ali dentro, no mínimo, gêmeos e, ainda, como se não bastasse, conduzindo pela mão e colo mais um punhado deles. Homens em cômicos chapéus de palha e ridículas calças brancas na altura de suas canelas, exibindo rostos vermelhos, castigados pelo sol de suas lavouras. Jovens casais enamorados, desfilando o pobre vestuário, o mau trato dos cabelos, dos dentes, em dissonância com a felicidade de estarem juntos; riam às gargalhadas, compartilhando o amor. À medida que se escoavam da manhã calorosa os minutos, crescia o movimento sobre a ponte.
Balouçando à deriva, a espera de suas partidas, as generosas embarcações que a tudo e a todos acolhia: esteiras de dormir, redes pesadas e coloridas, rádios, cadeiras de praia, lanternas, fogareiros, secadores de cabelo, animais de estimação, ventiladores, bolas, televisores portáteis, torradeiras e o que se puder imaginar de necessário e útil a uma viagem de dias.
A rampa de descida reverbera ao som trepidante das pisadelas da massa que, aos poucos, vai lotando o saguão de espera. É, na verdade, um amplo compartimento, suficientemente arejado para acolher centenas de viajantes que ali se aglomeram. A cada vinte minutos um apito agudo e prolongado anuncia uma nova partida. O auto-falante dá a conhecer o destino da viagem e o local rapidamente se esvazia para dar lugar ao tropel seguinte e a mesma cena se repete. Seria assim durante toda a manhã e, com menor intensidade, no restante do dia. Também eu, por enquanto, espectadora atenta e curiosa, faria, dentro em pouco, parte daquele cenário, para mim, inusitado, mas tão presente na rotina daquela população.
– Não sabia que gostava de se levantar tão cedo. – Percebi, quando disse estas palavras, olhando por cima da cabeça de Vítor, que esboçara um sorriso antes de voltar para mim seu rosto jovem e bronzeado. Ato contínuo levantou-se, mas tão atabalhoadamente que salpicou as pernas da bermuda branca que eu usava; teria agora que permanecer um pouco mais por ali, à beira do rio, até que a brisa fria me viesse ao auxílio e me devolvesse a devida aparência. Falando em aparência, a de Vítor não era das melhores. Estava abatido de rosto e tinha olheiras. Calculei que estivesse faminto e não me enganei, pois, devorava agora a refeição matinal à minha frente no mesmo café. Confessou-me o que me partiu o coração.
– Por que na rua? Não é lugar para se dormir, muito menos para viver. Há quanto tempo se encontra nessa situação?
Levantou as duas mãozinhas, mostrando-me sete dedos, o que me deixou ainda mais triste. A alegria de conhecer Vítor, diante daquela situação tão infeliz, e do que fiquei sabendo em seguida, desvaneceu-se completamente. Eram seus pais duas das vítimas fatais do terrível naufrágio, ocorrido há alguns dias nas águas do Tocantins e que fiquei sabedora através da imprensa do Rio de Janeiro; foi tão grande o choque que lhe lavara a voz. Vagava agora nas ruas como um cão sem dono. Muito pouco sabia eu sobre sua família. Que era filho único eu sabia; que amava os pais mais do que tudo neste mundo tornou-se ainda mais evidente para mim após a constatação daquele seu estado em que a voz emudecida, as lágrimas rolando na face e o estado de abandono enterneciam-me vorazmente.
Na tentativa de amenizar uma dor tão profunda, desviei para cenários mais alegres o foco de nossa conversa. Era-me penoso, entretanto, disfarçar meu sentimento. Levaria para a minhas longas horas de viagem um espírito contagiado pelo choque daquelas constatações; precisava fazer alguma coisa. Após brincar um pouco e extrair alguns risos tão comuns a um menino de 12 anos, indaguei de seus parentes. Certamente teria tios, primos ou avós dispostos a acolhê-lo. Não é uma grande cidade; é impossível que sua história não tenha levantado comoção suficiente para impedir-se um descaminhamento e o desperdício de mais esta existência. Vítor era na verdade um desses pequeninos entregues ao descaso da sociedade. No seu caso, tornava-se a situação mais séria e revoltante, posto ter sido o produto de uma inexorável fatalidade.
Em pouco mais de trinta minutos com Vítor o que consegui captar e assimilar de seu limitado poder de comunicação deixou-me uma certeza: em nome de uma vida que viceja e clama por desenvolvimento, eu precisava fazer alguma coisa.
Segundo minhas conclusões, os parentes que lhe restaram ali naquela cidade não teriam a mínima condição de cuidar de sua criação. Era um casal de tios cuja vida encontrava-se abaixo da precariedade. Alcoólatras, com uma penca de filhos miseráveis, viram em Vítor nada além de uma boca a mais; afeto e cuidado estariam, portanto, descartados.
Três dias foram o suficiente para a percepção inteligente do menino prever o mais infeliz dos destinos e fugir com a roupa do corpo. Não falhara a sua intuição, pois que não foi procurado; quem sabe, um alívio para o casal e umas peças de roupa a mais para os outros, vítimas da imprudência.
A manhã avançava. A série de nimbos, que muito cedo predispunha um dia chuvoso, dissipou-se por completo, deixando muito claro o firmamento; o sol voltou a se abrir. Esta sensação de bem estar e de conforto, própria dos dias de verão, transparecente no brilho e na frescura das águas, na agitação dos pássaros e no verdor das folhas, predominava em quase todas as fisionomias que por nós desfilavam. As crianças iam presas pelas mãos dos seus responsáveis porque havia o risco de se perderem no meio da multidão, mas expressavam em saltinhos, gritos de alegria e outros gestos toda a felicidade do momento. Vítor parecia contagiar-se nesta onda de alegria. Deixou num instante para trás o desânimo e a tristeza como se algo houvesse tocado o seu espírito. Abriu um largo sorriso, apontando para a estação. No prato ainda restava um pedaço do bolo de chocolate que vinha comendo e a caneca de leite estava abaixo da metade. Eu tentava interpretar o gesto de Vítor, mas não vi nada nem ninguém que o corroborasse. Contudo, uma idéia surgiu em minha mente, o que poderia representar uma solução ideal para alguém nas condições dele e, para mim, talvez, uma aventura ou, mais do que isso, um gesto de amor capaz de transformar uma vida; duas vidas, melhor dizendo. Sem ponderar as consequências nem os possíveis entraves, virei-me para Vítor e perguntei:
– Gostaria de viajar naquele barco?
Ele abriu, pela primeira vez, um largo sorriso e só então pude perceber como eram alvos e bonitos os seus dentes. A cor morena de Vítor era bastante acentuada e os traços um forte indicador de uma descendência de índio, com olhos arredondados, de grandes cílios e uma cabeleira negra cobrindo quase toda a testa. Intuí seu gesto como sendo um “sim” e olhei o relógio. Quarenta minutos era o tempo que me restava para incluir Vítor como passageiro em meu barco. Como desconfiava, não foi possível. Mas não desisti. Concordaram em transferir minha passagem para outra embarcação com destino a Borba e, para nossa sorte, para o dia seguinte, pois Vítor estaria comigo. Teríamos, então, um dia inteiro para nos prepararmos, ou antes, ao menino, falto de roupas e de brinquedos.
Era uma sensação muito agradável poder olhar aquele rostinho transformado agora junto a mim dentro do barco; um pouco de atenção, um tratamento amoroso fazem realmente uma grande diferença para alguém na situação de Vítor, valem até mais do que a vestimenta que está usando, dando-lhe um aspecto totalmente renovado. Ficaram para trás as unhas sujas dos pés e das mãos, a fisionomia triste e as olheiras da véspera. Deixei que escolhesse as peças ao seu próprio gosto, emitindo algumas opiniões. Caía-lhe bem o bermudão branco até os joelhos, a camiseta amarela e o belo par de tênis com travas. Quanto a mim não senti o cansaço e nem o tédio da viagem, pois tive em Vítor o meu passatempo.
As cidades ribeirinhas assemelham-se em muitas coisas; possuem o lugar comum da paz silenciosa própria das regiões florestais. Observam de longe a nossa chegada e nos recepcionam a seu modo. As aves que adejam ao redor dos galhos floridos das árvores, os sons indecifráveis dos animais vindos do interior da mata: o pica-pau construindo o seu ninho, a galhardia dos alegres macacos, representam o abraço de boas vindas ao recém chegado sem, no entanto, quebrar essa paz intrinsecamente imperturbável. Somados à quietude das primeiras horas matinais que nos viram chegar, trazidos por uma lancha de aluguel, estavam os meus anseios e, junto a eles, uma ponta de medo e angústia. Algumas mulheres, à beira d’água, lavavam peças de roupas que iam retirando de tinas arredondadas. Crianças seminuas corriam na terra úmida, no meio de porcos e marrecos que entravam e saíam pelo espaço aberto em uma longa cerca de troncos aramados. Além desta, o enorme quintal de uma propriedade rústica com horta, poço artesiano e duas pequenas casas de um lado e do outro. No fundo, um pomar e, atrás de tudo, a imensidão da floresta. A casa principal, no centro e em último plano, dominava a paisagem por causa do seu tamanho. Era, na verdade, a escola onde eu iria trabalhar. Construção simples, de dois andares, mas bem estruturada, mantida pela prefeitura local.
Já esperada, fui recebida na ampla varanda por uma senhora simpática de pele muito branca e cabelos cor de prata que, sorridente, estendeu-me a mão, apresentando-se como a diretora.
– Estávamos ansiosos por sua chegada; importa-se em começar amanhã mesmo os trabalhos?
– É claro que não, mas por que a urgência?
Sei como é penoso tocar um trabalho de educação deixado por outra pessoa e em local e condições totalmente desconhecidos. Ainda bem que teria pela frente toda uma noite de sono e, se possível, aquele dia também. Ela pareceu ler em minha fisionomia e na de Vítor que, ainda de mãos dadas comigo, não deixava de encará-la; sem perder o sorriso, falou:
– É por causa de um pequeno contratempo. Estamos em semana de provas e o serviço aumentou um pouco nestes dias; sem contar com o afastamento de uma das professoras.
– Está doente?
– Sim... Ou melhor... Não sabemos ao certo. É você quem a está substituindo, só que precisamos dela por mais algum tempo até colocarmos em dia o serviço; é questão de semanas. Ela não quer vir. Na verdade, já está aposentada há algum tempo. Alega problemas.
– Entendo.
– Quando se trata de direitos a coisa tende a ser a mesma em nosso país, não importa onde se trabalha. Nunca a soube reclamando sobre este aspecto; é a mesma desde que começou conosco há quase cinco anos, todos gostam de Jovelina.
A menção deste nome chamou-me a atenção e despertou minha curiosidade.
– A senhora disse que ela se chama Jovelina e está com vocês há quase cinco anos? – perguntei.
– Quatro anos e oito meses, para ser mais exata; lembro que veio para começar em agosto. Dá-me a impressão que a conhece, ou será que me engano?
– Sim... Quer dizer... Não a conheço. Mas, conheci alguém de sua relação. Quer dizer, de uma Jovelina, cujas informações coincidem com o que está me dizendo e que se encontra aqui em Borba.
– Então estamos falando da mesma pessoa, pode ter certeza. Borba é uma cidade muito pequena para este tipo de coincidência. Em todo caso, não quer conhecê-la? – está bem próxima de nós – disse, apontando para uma das casinhas em uma das laterais do terreno.
Era mesmo muito pequena, uma varandinha simples, mas que deixava transparecer um cuidado e preocupação pelas coisas da natureza. Algumas samambaias pendiam do alto em xaxins a se balançar em correntinhas prateadas. O murinho era ornado de pequenos vasos com flores e, no pequeno espaço do jardim que havia em frente, espécies rasteiras e multicores sobressaíam em meio à rica verdura do gramado e contornavam os arbustos e os pés de ervas. Sem esperar por minha resposta ela se adiantou, fazendo sinal para que eu a seguisse. Atravessamos o portãozinho de madeira e penetramos na varandinha.
– Espere um pouco, por favor, enquanto falo com ela. – Sentei-me em uma das cadeiras ao redor de uma mesinha de vime e aguardei. Antes, porém, que a diretora encostasse a mão na maçaneta da porta, esta foi aberta por dentro e uma mulher apareceu. Aparentava não ter mais do que sessenta anos, era de uma forte cor morena, estatura média e tinha um corpo robusto. Em poucos minutos de conversa, sentadas à mesa, obtive minhas primeiras impressões de Jovelina, a mesma que não saiu da lembrança do velho relojoeiro.
Alegando compromissos, deixou-nos a sós a diretora e eu pude conhecer um pouco mais desta mulher. Sua simpatia cativou-me por completo. Outra característica que apreciei foi o seu poder de decisão. Parecia realmente saber o que queria da vida. Quanto ao trabalho na escola, estava terminado; agradeceu-me por substituí-la e prometeu-me passar o serviço. Passados trinta minutos de uma conversa bastante agradável decidi-me, por fim, relatar o encontro que tive com seu ex-companheiro. Uma total transformação operou-se em sua fisionomia que demonstrou uma seriedade desconcertante; ficou lívida, encarando-me algum tempo e sem dizer palavras. Tive que quebrar o longo silêncio.
– O senhor Anselmo me pareceu uma pessoa bastante solitária; confessou-me que a ama e está sofrendo.
Sua expressão agora se fechou, revelando ódio; um ódio incontido, guardado há anos; deixara este passado reprimido nalgum canto da alma e agora a simples menção despertara um sentimento reprimido.
– Espere, tenho algo para a senhora. Não me demoro.
Ao deixar a varanda, Vítor, que estivera no pátio, brincando com outras crianças, ao ver-me, correu em minha direção, mas estancou ao ver Jovelina. De olhinhos arregalados, a boca escancarada num enorme sorriso, encheu-me de surpresa e alegria quando gritou:
– Vovó!
E disparou novamente invadindo a varanda e atirando-se nos braços da mulher. Jovelina recebia, retribuindo os beijos da criança que parecia não se conter de felicidade.
– Minha vovó! Minha querida vovó! Quanta saudade.
Minha felicidade não era menor do que a deles ao ver a alegria da mulher e ouvir pela primeira vez a voz de Vítor. A fim de não interromper aquele momento afastei-me para buscar o que tinha para Jovelina, mas ao retornar, nova surpresa havia ocorrido: o menino falava com a avó e ela tentava de fato lhe responder, mas tudo o que conseguia era articular sem, no entanto, conseguir emitir o som. Perdera a voz. Duas emoções em seguida fizeram-na emudecer. A princípio hesitei em lhe entregar a carta e o presente. Porém, ao mesmo tempo pensei que poderia ajudá-la. Eram complicados os seus sentimentos. Fui em frente.
Ao tomar nas mãos o estojo contendo um lindo relógio e ver a caligrafia no sobrescrito do envelope, duas lágrimas rolaram sobre sua face envelhecida. O que faria de sua vida daquele dia em diante é um eterno mistério.