Os últimos dias de Helena

Hoje de manhã estava eu novamente no jardim. Eram sete horas. Estava esperando Helena abrir aquela porta e sair toda exuberante...

... Desculpem! Deixe-me apresentar a vocês a minha vizinha Helena.

Uma mulher vistosa, trinta e poucos anos, dois filhos, separada.

O marido havia lhe deixado ainda nova e com os dois filhos pequenos. Foi atras de um rabo de saia. Nunca mais se ouviu falar dele.

Helena decidiu nunca mais se casar ou ter outro relacionamento. Seu sofrimento foi grande. Sua luta para criar os filhos, árdua.

Helena era exuberante, dona de um corpo escultural, motivo pelo qual eu, Eduardo, adorava cultivar meu jardim de rosas.

Religiosamente as sete horas ela saia para o trabalho. Era secretária em um hospital aqui na região. Muito eficiente, dizem.

E lá vinha ela toda produzida, um sorriso que deixava à mostra os alvos dentes.

- Bom dia Sr. Eduardo!

- Bom dia Helena!

O sorriso continuava até chegar ao portão. O meu também, é claro. Afinal, desejar "bom dia" àquela mulher era o melhor acontecimento do dia.

Depois que ela passava o portão e alcançava a calçada, eu deixava de lado minhas tarefas e debruçava no muro para olhar aquele desfile.

Ela, claro, sabia o que estava provocando, saía rebolando aqueles quadris enquanto sumia na esquina.

Quatro horas da tarde e lá vem ela toda elegante como se tivesse saído de casa naquele momento.

Quatro horas da tarde e eu ali no muro esperando.

No dia seguinte eu, como um relógio suíço, regava minhas plantas enquanto aguardava aquele sorriso que me deixava alucinado.

Assim eram os dias da minha vida. A esperança de ela mudar de ideia e me ver mais que um vizinho me alimentava, embora ela nunca tenha me dado esta esperança.

No dia dezoito de Agosto daquele ano, quarta feira, a porta não se abriu.

As nove horas da manhã eu estava no meu jardim, parado, sem saber o que estava acontecendo.

As onze horas Helena abre o portão. Escutei o barulho do ranger daquele velho portão de ferro. Pela janela vi Helena entrando sem aquele sorriso, cabeça baixa, passos desanimados.

Não tive coragem de sair e perguntar o que estava acontecendo.

Apos três dias sem vê-la, bate a minha porta seu filho mais velho. Com um papel na mão e os olhos encharcados ele me pede ajuda para entender aquela lista.

Uma receita que mais parecia uma lista de compras também me assustou.

Como pode a Helena, cheia de vida, precisar de tanto remédio assim!

Cada linha que eu lia revelava-me um horror que explicava os olhos chorosos do filho.

Helena estava doente, muito doente.

Peguei meu casaco, as chaves do carro e fomos para a farmácia mais próxima. O plano de saúde cobriu os mil e duzentos reais dos remédios daquela lista.

No dia seguinte me ofereci para levar Helena ao hospital onde ela iria começar o tratamento.

Meio sem graça ela aceitou minha ajuda mas pediu que não contasse nada aos vizinhos e principalmente os filhos.

Ela estava me preparando para receber um choque. O que eu veria a seguir marcaria minha vida para sempre.

Apos quarenta e cinco minutos de viagem (nestas horas o trânsito não ajuda mesmo) chegamos ao hospital onde algumas pessoas já a aguardava na entrada. A ficha já estava pronta e ela entrou rapidamente por um corredor, acompanhada de uma assistente.

Na sala de espera, ainda pude vê-la caminhando. Não havia mais aquela pompa. Pés rastejando, passos curtos e a cabeça que insistia em não erguer como se ali fosse seu sacrifício.

Naquele momento, um pouco mais tranquilo li, num papel que parecia guia de internamento de um paciente que estava ao meu lado, o nome daquela entidade. Era o motivo da preocupação de Helena.

Lá estava escrito: HOSPITAL GERAL DO CÂNCER.

Meu chão se abriu. Já não havia onde colocar meus pés. Minha cabeça rodava. Por alguns instantes fugi deste mundo cruel e me perdi.

Helena com câncer? Mas como isso pode acontecer? Toneladas de perguntas batiam em minha mente. Não havia respostas.

Três horas de tratamento e lá vem a Helena naquele mesmo corredor, mais abatida ainda.

Sua voz fraca apenas me pediu para levá-la para casa. E daí um silêncio tórrido e avassalador tomou conta da viagem de volta.

A cada quinze dias eu saia com Helena e percorria aquele calvário. Três meses se passaram. Os filhos da Helena já enxergavam a realidade da mãe. Eu precisava me conter para segurar nos braços os desfalecidos corpos daquelas crianças. A força que eu não tinha tentava passar para eles e, principalmente, para a Helena.

Ela sorria para mim. Alguns dentes ainda me lembravam aquela mulher que saia pela porta.

Eu já estava deixando meu carro na garagem da casa de Helena e sempre a carregava e a colocava dentro dele sem que os vizinhos percebessem.

Naquele dia ela me pediu para deixá-la na cama.

O rosto fino e estragado pelo tratamento esboçava apenas sinais de que ali existira um ser humano que eu tanto admirava.

Seus lábios murmuravam alguma coisa. Na vontade de entender aquelas palavras, coloquei meu ouvido bem perto dela.

E segurando sua mão ela me disse: Sempre adorei suas rosas!

Serena, silenciosa ela se foi.

Hoje cuido dos filhos que ela deixou.

Não abandonei meu jardim. As rosas estão mais belas que nunca. Vivas.

Assim como um relógio suíço, as sete horas da manhã estou cultivando meu canteiro. Claro que meu objetivo agora é outro.

Das rosas que florescem todos os dias em meu jardim, a mais bela enfeita sua morada.

Em sua nova casa, todos os dias ela escuta minha voz. Um "bom dia" sai engasgado da minha garganta. Um toque suave do vento me responde.

Um beijo na rosa, uma rosa no vaso. E um homem feliz.

Conheci a mais bela das mulheres e ela me tornou um ser humano melhor.

Enquanto volto para casa, olho para fora do carro. Na calçada ao lado, vazia, as lembranças.

Um dia estaremos juntos novamente. Eu, Helena e a rosa.

Luiz Caeté
Enviado por Luiz Caeté em 13/04/2012
Reeditado em 24/08/2012
Código do texto: T3610447
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