A Misteriosa Confraria das Quase Magras

Num domingo chuvoso e frio, que eu aproveitava para revisar a matéria que seria publicada no jornal de segunda-feira, me aconteceu algo muito estranho e excitante. Eu estava sentado em frente ao meu notebook, completamente absorto no trabalho, quando escutei batidas fortes na porta da minha casa. Gritei, sem levantar do lugar, para que alguém atendesse a porta, e voltei a me concentrar no texto. Para meu desespero e fúria, as pancadas na porta continuaram e agora eram seguidas de incontáveis toques na campainha. Levantei-me resmungando sobre a preguiça que tomava conta de minhas filhas e fui até lá. Quando abri a porta fui surpreendido. Não havia ninguém, provavelmente algum moleque sem ter o que fazer resolveu se divertir as minhas custas. Soltei um sonoro e cabeludo palavrão, levantei o dedo do meio, o maior de todos, e o mostrei a um suposto observador escondido em algum lugar. Fechei rapidamente a porta, um vento muito frio começava a gelar a ponta do meu nariz. Mal pouso a bunda na cadeira escuto novas batidas na porta, desta vez pareciam querer derrubá-la, estavam chutando-a e a campainha gritava esganiçada e ininterruptamente. Corri até meu quarto, peguei um porrete de madeira e voltei à porta, babando de raiva e não vendo a hora de arrebentar umas canelas alheias. Eu nunca que acertaria a cabeça de alguém, não sou tão malvado assim, contudo, acertar as canelas de um moleque sacana, ah, isso sim me divertiria. Abri a porta com o cassetete em riste, mas não tinha ninguém de novo, corri até a esquina, foi em vão. Voltei pra casa muito puto e com passos acelerados, foi quando eu vi, encostado a soleira da porta, um grande envelope pardo. Abaixei-me e o peguei. Levantei a cabeça procurando por alguém, nesta hora, um taxi passou vagarosamente pela a entrada da minha casa, no banco traseiro pude ver a silhueta de uma mulher que me olhava, levantei a mão para que o taxi parasse, ao contrário disso, o carro acelerou e saiu cantando pneu. Não reparei qual era a empresa e muito menos anotei a placa. O envelope era graúdo e imaginei ter muita coisa dentro devido a sua robustez. Levei-o para a minha mesa de trabalho e procurei em todos os lugares do embrulho algum nome de remetente, não encontrei nada, era anônimo. Isso não me surpreendeu. Como sou um conhecido jornalista e escrevo para o jornal de maior circulação da cidade, estou acostumado a receber correspondências sem remetentes. Abri o envelope com cuidado e retirei de dentro uma carta com quase trinta folhas escritas frente e verso, vinte fotos grandes de três mulheres, e um disco de DVD. Comecei pela carta e fui tomado por uma grande euforia. Era uma boa estória de uma organização secreta, que eu nunca tinha ouvido falar em toda a minha vida, chamada de A Confraria das Quase Magras, que poderia se transformar numa excelente matéria para o jornal, quem sabe, até concorrer a um premio jornalístico. Vou tentar resumir o conteúdo da missiva. A carta falava que essa organização era milenar, o segredo era passado de mãe para filha de forma ritualística e mística, quando as filhas completavam vinte e um anos. Todas as participantes dessa obscura fraternidade são mulheres com problemas de peso, que não são gordas e também não são magras, e sim, quase magras. Essa organização tem por primeiro princípio o sigilo. A clandestinidade se faz imperiosa devido a grande quantidade de mulheres, se não todas, sofrerem com problemas de peso, mesmo quando não estão precisando perder peso algum. Os problemas não são com o peso e sim com elas mesmas e seus espelhos. Sem o sigilo, não haveria sala alguma no mundo que coubesse a quantidade de mulheres que se filiariam a estranha seita. É inerente ao sexo feminino estar sempre alerta à balança e estar sempre precisando perder, ao menos, três quilos, mesmo que esteja esquelética. As ditas fraternistas, como todas as mulheres, nunca conseguiam chegar ao peso ideal, e discutiam nessas reuniões todos os tipos de possibilidades e novidades no vasto campo da indústria do emagrecimento. Elas falam sobre cirurgias, - praticamente todas elas já realizaram alguma cirurgia estética -, remédios alopáticos legais e ilegais, remédios homeopáticos, chás, mandingas, simpatias e macumbas. Ou seja, qualquer coisa que as livres de uns indesejados quilinhos a mais. Contrapondo as discussões sobre substâncias emagrecedoras, os encontros eram regados por várias garrafas de vinho e muitas guloseimas, nada insípidas ou pouco calóricas, como se haveria de pensar, ao invés disso, elas se fartavam em massas com muito molho vermelho, frangos assados, picanhas, queijos amarelos, todos os tipos de patês, biscoitos, pãezinhos, bolos, docinhos e as mais variadas sobremesas. As coisas iam muito bem até que três delas, as que estão nas fotos, começaram a pirar e durante os encontros incitavam as outras mulheres do grupo a odiarem as magras, e estavam propondo uma forma dolorosa de eliminarem todos os filés de borboletas e caneludas que existissem na face da terra. O delírio dessas três insanas “quase magristas” foi tomando proporções realmente perigosas fazendo com que umas das participantes resolvesse denunciar o grupo antes que algum crime viesse a acontecer. Elas se reúnem quatro vezes ao ano sempre as sextas-feiras. Tudo começa com uma oração a Santa Rita de Cássia, depois cada uma delas fala um pouco do que aconteceu durante os meses que não se viram, falam sobre dietas novas, sobre cosméticos e, claro, remédios anoréxicos. Sibutraminas, anfetaminas e tantas outras “inas” eram o assunto predileto delas. O último encontro foi o mais assustador e bizarro de todos. Segundo a minha desconhecida alcaguete, a turba de semi-gordas estava inflamada nesse dia, as três rebeldes encontravam-se alucinadas, visivelmente alteradas pela grande quantidade de açúcar e carbo-hidratos ingeridos, varias taças de vinho viradas goelas abaixo e doses cavalares de moderadores de apetite anfetaminados. Elas subiram na mesa e gritavam palavras de ordem, e de repúdio aos sacos de ossos andantes. As ouvintes, tão “aditivadas” quanto às discursadoras, apoiavam com gritos de: “morte às magrelas, morte às magrelas!”. O encontro virou um verdadeiro pandemônio, a vizinhança sem entender aquela barulheira descabida, chamou a polícia que acabou com a reunião. Uma gordinha mais afoita, com olhos esbugalhados e dentes travados, numa euforia quimicamente suspeita, apalpou e apertou a bunda de um dos policiais, foi detida e teve que passar a noite no xadrez. Uma das organizadoras explicou que estava havendo uma despedida de solteira e que esse era o motivo da algazarra. Depois de tudo esclarecido o anonimato da organização estava assegurado. O DVD mostrava a gravação desta última reunião narrada agora por mim, confesso que fiquei temeroso após ver a ira nos olhos arregalados daquelas cheinhas fora de si. Resolvi investigar o caso, sendo um bom jornalista também bato um bolão na arte da investigação. Depois de alguns dias investigando, descobri que duas das três radicais líderes do movimento anti-anoréxico não estavam na cidade, uma delas estava de férias nos Estados Unidos e a outra viajou a trabalho para a capital federal, então me concentrei na terceira pseudo-magra. Vanusa era uma galeguinha muito bonita, de olhos verdes, cabelos fartos e cacheados, pernas grossas e musculosas, seios turbinados e cinturinha de pilão conseguida numa lipoescultura recente. Fisioterapeuta com especialização em saúde da mulher, ela trabalhava há mais de cinco anos numa clínica na cidade de Neópolis, cidade banhada pelo “Velho Chico”, distante 123 quilômetros de Aracaju. Todos os dias uma van a levava de Aracaju até Neópolis. Segui-a durante o último mês, muitas vezes sentado ao seu lado na van, e não encontrei absolutamente nada que incriminasse minha investigada, ao contrário, Vanusa comportava-se sempre muito educadamente, estava sempre com um sorriso no rosto, e era querida por todos. Em nenhum momento percebi qualquer animosidade dela com outras mulheres menos adiposas que ela. Uma coisa curiosa era sua assiduidade em ir ao banheiro, fazia isso de uma forma regrada e às vezes apressada, e quase sempre era o número dois. Sei disso por que a vigiei de muito perto e quando ela saia do banheiro feminino, um odor nada agradável a seguia de lá de dentro, dava para sentir de longe. Muitas vezes me peguei pensando como de dentro de uma pessoa tão baixinha e bonita pudesse se esconder vapores tão pútridos. Estava quase terminando minha investigação, quando fui avisado por minha misteriosa informante, que uma das reuniões aconteceria dali a dois dias. Fiquei inquieto até a chegada do dia marcado. O encontro realizou-se no apartamento de uma delas. Contei vinte mulheres, todas elas muito bem feitas e bonitas, a meu ver não precisavam perder peso nenhum, estavam todas no ponto. Consegui com a ajuda de um poderoso binóculo, observar de um lugar estratégico toda a movimentação do interior da sala de reunião. No dia anterior coloquei na bolsa de Vanusa, sem que ela percebesse, um poderoso microfone que me permitia escutar tudo que elas falavam lá dentro. O início foi bastante calmo e alegre, com elas todas conversando amigavelmente. Na medida em que as garrafas de vinho iam esvaziando, e elas iam devorando tudo que era servido com um apetite devastador e tomavam seus comprimidos, um atrás do outro, tentando dirimir a gula e a culpa que as assolavam, mais excitadas, eufóricas e glutonas elas ficavam. Vanusa era a mais exaltada de todas, berrava como uma louca, segurando em uma das mãos uma enorme coxa de peru, que as raquíticas teriam que morrer. Aquilo me deixou muito balançado e a possibilidade daquela pequena loirinha ser uma assassina fria de magrelas voltou a se acender em minha cabeça. Ela, Vanusa, foi a última a sair, andou com passos velozes até seu carro e olhava assustada para todos os lados. Estava visivelmente desequilibrada. Saiu em alta velocidade e foi para casa. No dia seguinte, às seis da manhã, lá estava ela no ponto de sempre, esperando a van que a levaria ao trabalho, eu me encontrava um pouco afastado sem tirar meus olhos dela. Dois minutos depois o carro chegou e nós entramos. Vanusa estava com cara de poucos amigos e cobria seus olhos com grandes óculos escuros. Não sentei na poltrona a seu lado, preferi ficar na fileira de cadeiras a sua direita e um pouco atrás de onde ela estava. Ao seu lado sentou uma magérrima morena usando uma curtíssima saia, que deixava a mostra seus cumpridos cambitos. Senti que Vanusa ficou incomodada, ela se remexeu, passou a mão pelos cabelos, e olhou de soslaio para sua companheira de viagem. Eu acompanhava tudo, pronto para impedir qualquer ação violenta de Vanusa em relação à magrelinha que viajava ao seu lado. Faltando poucos quilômetros para chegar ao seu destino, Vanusa começou a ficar mais nervosa, percebi que ela suava profusamente e olhava para a menina ao seu lado com cara de ódio e fazendo caretas. Levantei-me e me aproximei do banco onde elas estavam. Vi que Vanusa estava cada vez mais desesperada e sua ira saltava aos olhos. Ela rapidamente abriu a bolsa e foi tirando um objeto de dentro dele. Meu coração disparou, ela iria matar a mulher a seu lado. Na hora que eu iria impedir Vanusa de retirar sua arma, o motorista da van deu uma freada brusca e eu fui lançado à frente. Neste momento Vanusa estava de pé olhando para a sua vítima e foi então que um grito assustador, saído das entranhas mais profundas do ser, foi escutado: _PAAAAAARAAAAAA ESSE CARRO AGOOOORA!

Todo mundo olhou espantado para quem berrava aquilo. Era Vanusa, ela segurava um rolo de papel higiênico na mão e gritava que se o motorista não parasse ela iria melar todo o carro dele de merda. O motorista ouvindo uma ameaça daquelas parou imediatamente e encostou o carro. Vanusa saiu a passos lentos e fedorentos, deixando escapar, aos poucos, sonoros gases mal cheirosos pelo seu vaso traseiro. Ao passar por uma velhinha, a idosa virou o rosto, tapou o nariz e disse: _Meu Deus do Céu essa menina já tá é morta. Vanusa andava a duras penas, sua barriga parecia uma caixa d’água enchendo, seus intestinos faziam barulhos como uma cisterna de descarga. Na tentativa de segurar aquilo que queria sair a todo custo, ela andava com os joelhos encostados um no outro e com os músculos da barriga e de outros lugares impróprios de serem ditos, completamente retesados. Chegou lá embaixo, olhou de um lado para o outro, não viu nenhum sinal de banheiro. Avistou mais a frente um vendedor de cestos de roupas, não pensou duas vezes, pegou um dos cestos foi pra trás da van, baixou a calça, encaixou seu traseiro no furo do cesto e despachou tudo lá dentro. O barulho daquilo foi estrondoso. Todos os outros passageiros que acompanhavam pela janela aquela insólita cena gritaram em uníssono: _OOOOHHHH! Enquanto isso Vanusa se contorcia num misto de dor e prazer. Chegando ao fim sua expressão de satisfação era enorme, sentia-se aliviada e leve, muito mais leve. Antes de levantar do seu improvisado vaso sanitário, soltou ainda mais alguns vapores venenosos transparecendo muita alegria e dando risinhos de contentamento. Limpou-se adequadamente com o papel higiênico, vestiu-se, dirigiu-se ao vendedor atônito que lhe olhava com olhos de incredulidade, perguntou quanto era o cesto, pagou ao homem e jogou o cesto fora, num matagal ao lado da pista. Entrou na van sendo observada pelos pasmos e boquiabertos passageiros. Sentou-se no seu lugar e falou calmamente: _Vamos lá motorista, pé na tábua, agora podemos continuar. Virou para sua magra colega ao lado e continuou dizendo: _Extrapolei ontem à noite numa reuniãozinha de amigas então tomei um chazinho laxante que é tiro e queda, mas acho que exagerei na concentração do purgante, mesmo assim valeu, devo estar uns dois quilos mais magra agora. Recostou-se na poltrona confortavelmente e chegou a cochilar antes de chegar ao trabalho. Depois desse dia deixei a investigação dessa organização de lado. Aquelas quase magras nunca que iriam matar ninguém, elas só saiam do sério durante as reuniões depois de muito vinho e muita bolinha. A minha oculta X-9 ainda me telefonou para saber o que eu iria fazer sobre o assunto, eu disse-lhe que não faria nada, se ela quisesse fosse ela mesma as rádios ou a televisão e fizesse sua denúncia. Isto aconteceu há um ano e parece que o sigilo da organização ainda está mantido e o segredo em segurança. Voltei à rotina normal da minha vida e até hoje nunca soube de assassinatos misteriosos envolvendo mulheres magras como vítimas.