Na ponta da língua
Era o ano de 1991. Meus amigos corintianos estavam loucos que eu fosse ao jogo da semifinal do Paulistão entre Corinthians e Portuguesa, no Pacaembu. Um tricolor no meio dos “maloqueiros” não ia dar certo. Mas, no psicológico acabei convencido, falaram que pela experiência poderia mudar a concepção de vida.
-Vamos, vai ser “dá hora”, você nunca mais será o mesmo - disseram.
Logo, no metrô, tive um susto agradável: a maioria dos corintianos era negra. Pensei: estou em casa. Começaram os hinos de provocações dos rivais. Ouvi cantar que palmeirenses e são-paulinos iriam morrer a todo custo. Só observava, sem acreditar. O pulo da torcida fez o metrô sacudir, o que levava à impressão de que este sairia dos trilhos. O soco no teto fez descer uma poeira acumulada que confundiu cigarro e outros estimulantes. Incrível, essa mistura formou um cheiro agradável.
Quando decretaram a morte de mais um tricolor, Nenê, meu amigo, foi correndo e me apontou como intruso. Não disse nada. Pensei, filho da puta! Arregalei os olhos e a barriga congelou. Os caras só desconfiaram. Riram de pena. A muito custo me contive pra não ir em cima dele e tirar sangue. Sabia, não deveria estar ali. Continuei calado até entrar no estádio do Pacaembu.
Na caminhada as mulheres são o alvo natural. Loiras querem levar pra casa, com flores, roupa lavada, cama arrumada, o que elas desejarem. Às vezes chamam de burras.
Com uma negra o tom de voz muda. É violento. “Come” na sexta-feira pra tirar a zica, é negrinha fedida, é urubu. Disseram que se parecia com as mulheres deles. Permaneci mudo, que ódio dos corintianos! Tinha que ser os torcedores da marginal sem número, sem estádio, sem nada. Racistas. Não se olham no espelho. Perguntava-me: será comum em outras torcidas? Será que gostam de mulheres?
Na fila para entrar no estádio o cântico que emanava lá de dentro era ensurdecedor. Meus amigos mostraram-me a enorme torcida fanática cantando. Fiquei paralisado. Já anunciava algo tempestuoso.
O jogo em si não teve importância. O resultado já era esperado. A Portuguesa é freguesa há décadas. O Corinthians meteu um, dois, olé pra lá e olé pra cá.Gols de Dinei e Paulo Sérgio. A torcida é que ditava o ritmo das minhas emoções. O cântico da massa devasta qualquer medo. Uma bomba poderosa e incontrolável. Gostava disso.
Tive a coragem de tirar a camiseta junto com aquela torcida negra. Raramente exibia o corpo magro. Comecei a gritar e pular sem parar. O psicológico sumiu, sou irracional. Caralho! Que sensação! Nem pisco. Nervos à flor da pele. Deu aquela vontade de sair batendo em todo mundo.
Dener, o craque da Portuguesa, caiu sozinho. Não deu outra, os xingamentos foram imperdoáveis. Na hora já apontei o meu dedo em riste e gritei:
-Joga nada, seu lixo, seu preto narigudo.
Jogo encerrado. A multidão caminhava pela rua comemorando a vitória, as cantorias não paravam. Meus amigos colaram em mim, pegaram no meu braço, e pesaram no ouvido:
-Vira corintiano! Vira!Vira! Vira! A hora é agora. Ta vendo? Isso que é torcida!
As palavras coçaram a língua. Uma vontade assustadora me tomou. Principio de balançar a cabeça, pensava vou virar, acho que não tem jeito. Mordi a língua. Abaixei a cabeça e olhei a camiseta que estava vestindo. Era da apartheid. A foto de soldados com cassetetes marchando de encontro aos pretos.
Entendia o significado da imagem, as notícias de Nelson Mandela libertado chegavam aos meus ouvidos. Então, como pude aceitar calado os caras molestando as mulheres negras na rua? Como pude ofender o jogador da Portuguesa de tal forma? E ainda virar momentaneamente corintiano? Foi horrível!
Minha namorada negra, minha mãe e irmã negras, e no calor da torcida vomitei aquelas palavras. Senti-me um lixo.
Foram minutos de reflexão que não deveria esquecer, a noção de que o racismo estava em mim, num momento de pura euforia. Realmente, nunca mais seria o mesmo e continuei são-paulino.