PÉ COM PENA, PÉ SEM PENA.

"Todo sentimento

Precisa de um passado pra existir.

O amor não.

Ele cria por encanto

Um passado que nos cerca.

Eles nos dá a consciência

De havermos vivido anos

Com alguém que há pouco era um estranho.

Ele supre a falta de lembrança

Numa espécie de mágica"

Amacord, diria Federico Fellini, a respeito do professor que dava aula a fumar e a equilibrar, até não mais poder, a cinza na ponta do cigarro.

De tal forma, que os alunos ficavam a prestar mais atenção no malabarismo, do que na matéria ministrada.

Eu me lembro, digo eu, eu me lembro, mais do comportamento da boa professora, do que da sua aula.

Coisa da infância, quando tudo nos estimula e tem enorme importância na formação da nossa experiência.

Que pavimenta nossos sentimentos futuros.

Ensinava a professora discurso decorado:

""Aqui nesta sala de aula somos iguais e diferentes.

Alguns são mais estudiosos, mais inteligentes, mais dedicados.

Esses alunos são os melhores.

Outros, preguiçosos, sem higiene, não se alimentam de maneira correta, não se comportam e não estudam.

Esses, são os piores."

Eram premissas que separavam bons e maus.

"Quando tomo a lição ou aplico a sabatina, dou nota de acordo com o resultado de cada um.

Os mais estudiosos tem notas melhores; os outros, notas piores."

"Mas não é assim em todos os lugares do mundo.

No comunismo tudo é dividido em parte igual.

Para que cada qual tenha um pouco.

Mesmo sem merecimento."

Isso é correto?

"Não professora !"

"Vejam se não tenho razão? Tomada a lição dou nota de zero a dez.

Cada um se distingue pelo próprio mérito."

"No comunismo, não é assim.

Depois de dar a nota para cada um, o professor é obrigado a somar todas e dividir pelo total de alunos.

E todos tem notas iguais, pela média."

"O esforço de cada um não é valorizado."

A pregação tinha um objetivo.

Era imposição do Estado, dar palpite na área da educação.

E, não fazia muito, houvera uma revolta de antigos posseiros na região de Araçatuba, contra os proprietários das terras antes devolutas, distribuídas pelo Estado para desmatamento e ampliar a fronteira geográfica.

Ocorreu no Bairro Nove de Abril.

Do qual hoje só resta lembrança dos antigos.

Talvez do ocorrido reste anotação no arquivo do judiciário.

E que eu saiba, foi lembrado uma vez pelo promotor Dr. Hélio Bicudo, de breve passagem profissional por Araçatuba.

E, de vez em quando, algum lavrador desavisado, ao arar a terra, desenterra o resto de uma velha máquina de costura, algumas panelas ou ossos e desconhece a origem.

Por isso as crianças da zona rural eram alfabetizadas para se manterem na superfície, no decorrer da vida.

Hoje, o comunismo acabou.

O Bairro Nove de Abril sumiu.

Poucos alunos se interessa por história.

E o último comunista, Fidel Castro, é um dinossauro que bate na porta do céu procurando lugar para ele e para a sua doutrina retrograda.

"Pé com pena;

pé sem pena."

O sargento do meu regimento, tendo como recrutas um bando quase analfabeto, que não aprenderam no momento certo da vida o que é esquerdo e o que é direito, mandava colocar uma pena de pássaro no pé do coturno esquerdo.

O esquerdo, era o "pé com pena".

O direito, "pé sem pena".

Treinava a tropa gritando:

"Pé com pena; pé sem pena".

"Esquerdo, direito."

Com esse recurso todos marchavam igual.

A professora da escola rural usava método parecido, porque, tanto ela quanto o sargento, cada um a seu modo, amava seus alunos.

Fiel ao plano de ensino, a professora ditava os malefícios da igualdade.

Obediente à necessidade de apresentar ao superior uma tropa que marchasse certo, o sargento usava o método da pena; mesmo sob o risco de sofrer repreensão dos superiores.

Era como no poema,

"o amor nos dá a consciência

De havermos vivido anos a fio

Com alguém que há pouco era um estranho."

Já de cara, o sargento mandava às favas o rigor do treinamento militar

Depois a professorinha chutava pró brejo o discurso ensinado.

Porque eis que ela, depois de todo proselitismo, no recreio reunia os alunos na varanda.

Para organizava a hora do lanche e do lazer.

Por experiência sabia que tinha aluno que não trazia merenda, porque tinha pouco alimento em casa.

Presenciara que alguns comiam e outros não.

Para contornar a tristeza, ela fazia uma espécie de festa.

Com canções, bate palmas e alegria, ficava a incentivar que cada qual dispusesse na mesa a merenda que trouxera de casa.

Encantava a criançada, como uma fada, para dividir a alimentação em montinhos mais ou menos iguais.

Desse modo todos comiam.

Na sua pureza, praticava o inverso do discurso que pregava.

"Pé com pena;

pé sem pena."

Sem a pena, a marcha militar não cadenciaria correta.

Sem a piedade, alunos não comeriam.

Porque, a despeito das rotulações simplistas, temos obrigação moral para com nosso semelhante.

Nossa consciência nos cobra para com os que nos rodeiam, para as que encontramos pelo caminho ou que entram no nosso espaço físico moral.

É nessa proximidade e obrigação para com o semelhante que aprendemos a amar, a respeitar um ao outro e a construir a cidadania.

Porque eis que:

o amor supre a falta de lembrança,

como espécie de mágica."

.....................................

Obrigado pela leitura.

Sajob - março / 2012