Férias na fazenda

O mês de junho era sempre esperado com ansiedade por nós dois, eu e meu irmão Aloísio Filho. Esse mês, no calendário escolar do Ceará, destina-se às férias, férias juninas, período de festas consagrado aos santos São José, São João e São Pedro. Mês dos balões, dos fogos de artifício, das quadrilhas, da fogueira, do aluá, da canjica, do bolo de milho, da batata-doce, do pé-de-moleque e de mais outras iguarias preparadas só e especialmente para esse mês.

Como eu disse, era também o mês das férias escolares, quando eu e o Bil, como era conhecido o Aloísio Filho quando garoto, íamos para a fazenda Jurema, localizada no município de Caucaia, de propriedade do Dr. Turíbio de Souza, dentista, mas que não praticava a profissão, cujo motivo desconhecíamos.

A sede da fazenda ficava a uns dois quilometros da parada do trem da Jurema, percorridos a pé. Saíamos de Fortaleza geralmente no horário das 17 horas, sempre em companhia do Dr. Turíbio e de alguns de seus filhos que estudavam no Liceu, moravam em Fortaleza e nas férias e final de semana voltavam todos para casa. A viagem era tranquila, trem sempre limpo, sem superlotação e o único problema era que ao passar pelo distrito de Floresta as crianças corriam paralelas ao trem jogando pedras, muitas vezes causando ferimentos nos passageiros ou quebrando os vidros das janelas quando elas se encontravam fechadas.

O percurso de 21 km, chamado de Linha Norte a partir da Estação Central Prof. João Felipe, na Praça Castro Carreiro, Fortaleza, até Caucaia, o trem fazia em 40 minutos ou um pouco mais, dependia da demora nas paradas intermediárias: Floresta, Antônio Bezerra, Jurema e Araturi. O nome João Felipe para a Estação da Rede Ferroviária do Ceará foi dado na gestão do Presidente da República Dr. José Linhares, cearense de Baturité, no ano de 1946.

João Felipe Pereira foi Ministro das Relações Exteriores, da Agricultura e Viação e Obras Públicas do Governo do Marechal Floriano Peixoto. Professor da Politécnica do Rio de Janeiro, João Felipe foi também diretor dos Correios e Telégrafos, Inspetor de Obras Públicas do Rio de Janeiro, Presidente do Clube de Engenharia e Prefeito do antigo Distrito Federal.

Construída em estilo dórico-romano pelo engenheiro austríaco Henrique Folgare, a Estação Central Prof. João Felipe, que teve sua pedra fundamental lançada em 30 de novembro de 1873, e obras iniciadas em 1879, só foi inaugurada em 9 de junho de 1880, ainda no Reinado de Dom Pedro II. Sua arquitetura sempre me fascinou, naquele galpão de vão alto e majestoso eu me sentia pequeno, menor do que já era. A movimentação de pessoas e cargas me confundia, alguns correndo, outros em seus passos lentos demonstravam despreocupação ou mesmo cansaço. Era geralmente fim de dia e de semana que fazíamos essas viagens. Nas paradas, era um entra-e-sai de gente. Dentro do trem muitos estudantes, principalmente do Liceu. Não havia o medo que existe hoje, poucas pessoas ficam em pé, não havia os descuidistas, que levam seus pertences no momento de uma distração sua. Também não havia o esfrega-esfrega de hoje, que deixa mulheres bastante incomodadas.

O trem também me fascinava e até hoje me fascina. Aquela máquina possante a puxar seus vagões! Quando chego a algum Estado ou País que fornece trem como transporte, procuro percorrer alguns quilômetros de seu caminhar, para apreciar da janela a paisagem que sempre muda. Já viajei de trem entre São Paulo e Rio de Janeiro, por algumas cidades de São Paulo; entre Gottigem e Berlim, Alemanha; entre Gottingem e Milão, Itália; entre Milão e Roma; entre Gottingem e Zurique, Suíça; e daí para Frankfurt, entre Lisboa e Marinha Grande, Portugal.

Mas, voltemos às nossas férias na Jurema. A casa da fazenda, que ainda hoje se encontra de pé, lá no bairro Jurema, foi construída a 500 metros do portão de entrada. O pavimento inferior, o porão, servia para a guarda dos implementos agrícolas, das colheitas, representadas por feijão, arroz, milho, mandioca e castanha de caju, dos doces produzidos na fazenda – caju, goiaba, acondicionados em caixas de madeira, geralmente de 40x20x20cm, forradas com papel manteiga. Devido à umidade, formava-se sobre os doces uma capa de mofo, fungos, que era retirada quando da pesagem para a embalagem e distribuição. A informação que nos passavam era que aquilo não causava dano a nossa saúde. No porão era guardado também o açúcar para a preparação dos doces e os mantimentos da casa, comprados em grande quantidade, como óleo, banha de porco, enlatados, café em grão, que depois era torrado e moído na própria fazenda, tudo isso guardado a sete chaves pela D. Áurea, esposa do Dr. Turíbio e mãe de Nelson, Gina, Telma, Vanda, Alba, Paulo, Hélio e Lincoln. Acho que era essa a ordem de nascimento deles.

Uma escada, que me parecia majestosa à época, dava acesso ao piso superior da casa grande, onde um alpendre que se estendia pela frente da casa e suas laterais, protegia os quartos do calor intenso que fazia durante o verão. Sobre os quartos, em número de três, havia um mezanino, sempre ocupado pela Telma e seu noivo Didi, que já tinha adquirido status definitivo de morador, pelo seu longo tempo de noivado. Eu nunca fui convidado a conhecer essa parte da casa. Para mim, ele escondia um mistério e eu ensaiava visitá-lo sorrateiramente, mas o seu acesso era por meio de uma escada de madeira bastante íngreme, difícil de subir, o que me causava medo. É importante deixar registrado que já naquela época, final da década de 50 do século passado, a família Turíbio de Souza se mostrava muito avançada, pois os namorados das filhas dormiam na fazenda, não havendo nenhuma censura.

Depois dos quartos vinha uma imensa sala, vazada de um lado ao outro da casa, sem proteção de janelas, e que abrigava uma grande mesa para refeições, só usada em ocasiões especiais, ou quando havia muita gente, sempre com comida farta. As refeições eram, na verdade, feitas em outra mesa, colocada na cozinha, construída já no estilo de cozinha americana, igualmente bastante espaçosa. Ela também servia para o trabalho de pesagem e embalagem dos doces, manteiga, queijo e demais produtos fabricados na Jurema. A fabricação de todos os produtos tinha sempre a supervisão de D. Áurea. Os doces eram fabricados em um galpão construído na parte traseira da casa. Em cima de fogões improvisados com tijolo contendo lenha em incandescência, os doces ferviam em enormes caldeirões de cobre até atingir o ponto ideal, determinado por D. Áurea, e tinha sempre um empregado mexendo o tacho de cobre, para não deixar o doce queimar ou passar do ponto. A receita era simples: açúcar sob medida, uma determinada quantidade do fruto ou leite e era só mexer, processo realizado com uma colher de pau de cabo enorme, para que o empregado ficasse longe do fogo, única proteção dele para realizar esse trabalho. O cuidado com a higiene também não era lá essas coisas. Porém, somente agora eu percebo essas falhas. A manteiga era batida em uma batedeira manual de alumínio.

Outra curiosidade naquela casa era a lavadora de roupa, uma máquina manual que tinha de ser girada constantemente e sob ela ardia um fogo de lenha. Para tirar o excesso de água depois de lavadas, as roupas eram enroladas e espremidas, só então eram colocadas para secar. A geladeira também era interessante, movida a querosene, e o rádio funcionava bateria, não havia energia por aquelas bandas. A casa era iluminada por velas ou petromax, lampião provido de um depósito para querosene, contendo uma bomba de pressão, do qual sai um tubo tendo na extremidade um vaporizador e fixado a este uma camisa em seda em forma de lâmpada, protegida por um cilindro de vidro. No cimo tem uma chaminé por onde saem os gases. Ele fornece uma luz intensa e brilhante.

Todos os meninos que lá se encontravam em férias participavam da pesagem e embalagem dos produtos. A manteiga era pesada sobre um pedaço de papel manteiga, geralmente um quilo ou quinhentos gramas, e depois enrolada e colocada na caixa apropriada. Assim era com o doce de caju e com o de goiaba. Já os doces de castanha e de leite eram cortados em tabletes e enrolados separadamente em papel celofane. Nas caixas havia uma impressão colorida de um desenho representando o doce contido, com os dizeres: Doce de caju da Fazenda Jurema de Propriedade do Dr. José Turíbio de Souza.

Terminada a tarefa, íamos todos para o alpendre lateral esquerdo da casa, onde havia uma vitrola que funcionava por corda. Tocava disco de 78rpm e sua agulha parecia mais um prego de aço com uma ponta mais afinada. Era ao som desse aparelho e à luz de vela que dançávamos. O ritmo era bolero, samba-canção, tango, chorinho e outros que não me recordo. Todas as meninas eram mais velhas do que eu, mesmo assim eu dançava bastante, pois era metido a bom dançarino. Não havia maldade alguma nessa brincadeira.

Do lado direito da sede da fazenda havia um campo de futebol, onde jogava o Jurema Futebol Clube, mantido pelo Dr. Turíbio. Aos domingos ela pagava a algum time para vir jogar com o seu Jurema, era uma festa. O time trazia os jogadores e os torcedores na carroceria de um caminhão. Eu nunca presenciei uma briga durante esses jogos, isto é, só uma vez, quando, por falta de juiz, colocaram o Bil para apitar o jogo. Ao marcar um pênalti contra o adversário, que não existiu, um torcedor deles quis bater no Bil. Nelson, Paulo e Hélio, filhos do Dr. Turíbio, e jogadores do Jurema correram em socorro do meu irmão.

Toda a torcida adversária entrou em campo, fato que foi acompanhado pelos moradores da fazenda. Um bafafá danado, só acalmado quando o Dr. Turíbio foi até ao campo e pediu que o motorista desse a partida no caminhão que trouxera o time adversário. Como não havia como sair daquele lugar por outros meios, os visitantes correram para o caminhão e não houve mais confusão nem jogo naquele domingo. Os de casa ficaram a comentar o acontecido e a rir dos visitantes por causa da corrida deles para pegar o caminhão. Depois de tudo calmo, foram encontrar o Bil escondido na república, ofegante e pálido.

Do lado esquerdo da sede da fazenda havia pequenas casas de pau-a-pique, que serviam de moradia para os trabalhadores. As localizadas bem ao lado da sede eram utilizadas para receber os visitantes menos ilustres, isto é, os parentes e os amigos homens dos filhos do dono da casa. Era só para dormir, pois passávamos o dia pescando, caçando, jogando bola, nadando no açude e, à noite, trabalhando e dançando.

Nessas casinhas, chamadas república, muitos fatos engraçados aconteciam. Todos dormiam em rede e na hora de dormir era necessário ter muito cuidado. Alguém poderia ter vindo antes e colocado uma armadilha, o punho da rede na ponta do armador, peça de ferro em forma de meia ferradura, pregado na parede e que serve para receber o punho da rede, para armar a rede. Ao deitar-se o sujeito levava um tombo, sempre acompanhado pelas risadas dos demais. Nelson e Paulo eram mestres nessa brincadeira. Marcos, acho que sobrinho de D. Áurea, por ser muito pesado, mais de 100 kg, era o único que dormia em cama, uma pequena cama da marca Patente. Era também o único a rir sempre, a gozar de todos, dada a impossibilidade de se armar armadilha para ele. Certo dia alguém teve a ideia de desarmar a sua cama, retirando os pinos que seguravam o estrado da cama, deixando-o totalmente desencaixado de seu respaldo. Como ele era sempre o último a ir dormir, pois esperava para saber quem cairia naquela noite, ao entrar na república encontrou todos deitados, todos fazendo como se estivessem dormindo. Repetindo o ritual de todas as noites, Marcos entrou sorrateiramente, vestiu o seu calção de dormir, a única peça que usava nessa hora, pois o ambiente era abafado e sempre fazia muito calor. Preparado para dormir, Marcos flexionou os joelhos vagarosamente para se deitar na cama; seu peso só permitia essa atitude até a certa altura, daí em diante ele se deixava cair completamente e se esparramava na cama. Desta vez a cama caiu com ele e ao tentar levantar-se caiu novamente. Todos nós permanecíamos quietos, prendendo as risadas, esperando novas cenas. Depois de várias tentativas, Marcos conseguiu levantar-se e, no escuro mesmo, procurou uma vela. Ela estava sobre um guarda-roupa encostado na parede em frente da sua cama. Ao tentar alcançá-la o guarda-roupa virou sobre ele. As gargalhadas explodiram, alguém acendeu uma vela iluminando a situação em que se encontrava Marcos, ridícula, humilhante. Marcos nunca mais foi passar suas férias na Jurema.

Com o Bil, também conhecido na Jurema por Landu, até hoje desconheço a origem, muitas paradas aconteceram. Ele era metido a corajoso, dizia que enfrentava qualquer situação de perigo. Certa noite ele desmaiou ao ver no chão uma melancia em formato de caveira e com uma vela dentro. Vou contar melhor:

Era costume, na Jurema, os meninos saírem à noite para caçar utilizando lanternas. O foco de luz era direcionado aos olhos dos passarinhos que dormiam nos galhos das árvores. Ofuscados, eles ficavam como que hipnotizados, então vinha alguém com uma vara com uma rede na ponta, tipo daquelas para caçar borboleta, e alcançava o passarinho. Na noite do desmaio de Bil, Paulo e Hélio haviam preparado a melancia com a vela e colocado no meio do cajueiral, no chão. Era por ali que seria a caçada daquela noite. O Bil, sempre à frente, parecia guiar o grupo. Ao avistar a luz, falou para o Nelson que algo esta pegando fogo. Prontamente, Nelson pediu para o Bil ir apagar o fogo, pois poderia queimar toda a capoeira ao redor e atingir a plantação de milho próxima. Antes, Nelson perguntou se ele tinha coragem e a resposta foi positiva. Bil se dirigiu com cuidado em direção àquela luz, quanto mais se aproximava mais devagar ele caminhava. Ao chegar bem próximo da melancia, percebeu uma caveira soltando fogo pela boca e pelas narinas - assim ele descreveu depois de se recuperar – ele se pôs a correr, caindo desmaiado cem metros adiante. Todos ficamos preocupados, foi preciso trazer álcool para fazê-lo retornar. Bil passou muitos dias sem demonstrar valentia.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 30/03/2012
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