_Murmúrios de alegria
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O velho saltimbanco[1] e mudo viajante entra no trem da metrópole mundial na primeira estação. Anualmente, milhões de pessoas de todos os cantos aportam por lá. Em algumas, existe o desejo de embrenharem-se na história da humanidade, conhecer nos museus a realidade em concreto do abstrato passado dos ancestrais; sonhar em cores, longe da visão em preto e branco das multicoloridas páginas dos livros – a real matiz do mundo está no toque. Todo conhecimento repassado por alguns dos sentidos, sem o crivo da pele ou o contato das mãos – perseguidas por olhares curiosos – é temperança[2] quase incolor. Sem o íris da cor o mundo é cego, a orbe é muda, sem cheiro, sem título, sem audição de árias[3]. As paisagens voam com o deslizar do trem. Olhar curioso. Ouvidos atentos. Ele as observa.
Lugares vazios. Outra estação, a segunda. Param. Portas se abrem. Breve intervalo. As aberturas se fecham em sincronismo militar numa pancada só. Silêncio. Rumo à nova parada. Menos olhares se cruzam. Mais vazios incorporam-se aos metais suspensos de cada vagão. Os passageiros vão dando adeus àquela viagem. É a terceira estação. Haverá reencontros, mas a tônica é a despedida. Não há choros. Não há desentendimentos aparentes. A correria confere ao ranger das peças, no atrito dos dormentes, inquietude[4].
Outro homem interrompe a apatia[5] do deslocamento. Ele entra na terceira estação. Observa. Senta. Cruza as pernas. Olha para o histrião e, sem convite, inicia incompreensível desabafo. Ambos se entreolham. O recém-chegado parece deprimido, angustiado, desequilibrado e, por vezes, ameaça levantar-se abruptamente[6]. O discurso solitário prossegue. Ele esbraveja – parece xingar o velho. Duas realidades. Dois mundos. O homem mais novo é do velho continente, bem empregado, alto, claro, olhos azuis, trajes refinados – parece solitário também. Reinicia a fala. O discurso parece preso, necessitando de alterité[7] para o extravasamento.
O velho viajante, perseguidor da existência, empregado nas ruas da arte, fazendo rir e tentando comunicar-se sem a palavra que lhe fora roubada de nascença – é feliz. Andante desde a tenra idade aprendera que num gesto pode haver alento; numa gorjeta pode estar o alimento... E no silêncio, o grito da existência infeliz, o parto do natimorto[8], sem a libertação do medo.
E o moço vai falando. Falando. Gritando. Gritando. Gesticulando. Gesticulando. Do outro lado, olhares curiosos, afáveis[9], benevolentes[10]. O moço parece chorar... E finalmente chora. Lágrimas pesadas. Corpo suave, leve. Silencia. Encara o velho homem do novo mundo. Ambos põem as mãos à altura do peito. É o código. Sentem o pulsar dos próprios corações. Vida! Esperança. Ressurgir. O velho abre um lindo e condescendente sorriso. O moço sorri do outro lado. As feições cerradas de outrora parecem portas escancaradas esperando o filho desaparecido, o desaparecer da vida errante, ou o fim da condição de peregrino. Abraçam-se num sinal de mútuo agradecimento. O jovem sai, cantarolando desconhecida melodia. Ele percorre os vagões. Aqui e acolá alguém, assustado, comenta a atitude desapegada do jovem. O velho escuta o som dos assobios que vão se tornando cada vez mais distantes. Internaliza cada nota da canção e, ao descer, na quinta estação, surpreende-se ao repetir os mesmos acordes na gravidade que o tempo nos coloca nos ombros e nos lábios com o passar dos dias.
Antes de partir ao descer na estação anterior, o jovem ergueu os longos e vigorosos braços fazendo sinal de adeus.
(Nijair)
Crato-CE, 11 de setembro de 2011.
20h14min
[1] Histrião. Artista popular itinerante.
[2] Consulta
[3] Canções.
[4] Inquietação.
[5] Falta de energia, indolência, indiferença.
[6] Inesperadamente. Leitura: Ab-ruptamente.
[7] Alteridade. Refere-se ao outro.
[8] Aquele que nasceu morto.
[9] Delicados, gentis.
[10] Que desejam bem aos outros.