_Resiliência [1]

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As noites são o tormento de quase todas as agonias. Sonambulismos. Os crimes roncam num ronronar[2] incômodo para os tardios transeuntes[3]; e as ruas, as frívolas[4] passarelas de saias e vestidos soltos ao vento, ao nascer do dia, provocando arrufos[5] de curiosidade, agora acomodam corpos silenciados pelo calor da pólvora.

Ainda hoje, antes do horário reservado às donzelas[6]; quando se escondem e se protegem dos sedentos caçadores, Esmeralda, a moça mais cheia de sedutoras[7] curvas do bairro, brindou-nos a todos desfilando com passos fagueiros[8], meneios[9] deslumbrantes, altivo[10] olhar... Ela sabe exatamente o resultado da oportuna e ansiosamente esperada aparição. As cabeças cedem ao poder atrativo: todas se voltam para ela, fixando o ângulo de visada no que se esconde à linha da cintura, no verso e no reverso, daquela beldade[11]. O vestido de toile de soie[12] azul, curto, denotando intenção afável[13] e pueril, contrasta com os devaneios lúgubres[14] dos marmanjos da praça. Pedro Delmiro era o mais incontido e suspirava de contentamento. Éramos sonhos coletivos buscando o tesouro único da feminilidade discreta. O tempo, traiçoeiro e caçoador[15], entretanto, soprava fina brisa, incapaz de erguer a suave seda azul que nos conduziria ao céu do estouvamento[16] merecido.

“São lindas aquelas curvas!” – foram as únicas palavras a romperem o silêncio. Digno elogio de Pedro Delmiro.

As ruas do bairro estavam sem asfalto. A passarela, em forma de calçamento inacabado, naquele fim de tarde de domingo, servia de tempero e tira-gosto para a cachaça caseira do botequim do Seu Chiquinho – velho diabético que perdera um dos dedos do pé esquerdo por causa da maldita enfermidade. A sede e a fome daqueles homens gulosos estavam fora das mesas. Os pratos estavam postos, mas todos pareciam pedintes suplicantes.

Quando Esmeralda sumiu, deixando saudade, e os beberrões se voltaram para assistir ao jogo na tevê, o placar havia mudado: estava de um tento[17] a zero para o time rubro-negro.

Certeiro, também, foi o comentário de Dona Nicota já noutro ponto da rua. Viúva aos 27 anos, era a mais bem informada e badalada senhora dos arredores. Ao avistar a moça passando, solta o venenoso colóquio[18] pra todo mundo da calçada ouvir e concordar:

– Eita, que menina bendita! Que vestidinho esgarçado[19] duma figa! Essa daí separa até noivo depois do sermão do padre Faio, na hora do casório, já com o “sim” na beirada da boca!

Coitado do Nicanor. Era homem bom, educado, prestativo – a esposa, a viúva, era por demais caridosa, muito mais que o marido, mas o altruísmo do padeiro comovia vizinhos e desconhecidos. Morreu cedo demais, 33 anos, verdadeira crucificação. Teria sido o tal do desgosto?

Foi direto para o céu, coitado! – diziam todos, cerrando os dentes.

Aturar Dona Nicota e as manias dela quando o marido virava a madrugada fazendo pão, era tarefa difícil; fardo pesado, ombros cansados.

As estripulias de Dona Nicota davam um zunzum[20] que só cego de nascença pra não perceber! Certas safadezas, porém, os cegos sentem, pois os rastos da sem-vergonhice deixam odores assimilados por olfatos atentos.

“Qualquer casório carece de tempero pra se suster depois que essa flor põe o tornozelo de cristal junto ao sapatinho enfeitiçado do desejo!”. “Ai do marido alvejado[21] por esse olhar de anjo! Aliás, ai da esposa!” – essas eram algumas das profetizações de Dona Nicota.

As outras mulheres, sempre atentas, espreitavam[22] o cortejo[23] vivaz dos parceiros, antepondo-se à visão deturpada[24] que nós homens, intimamente criamos, sobre dorsos femininos de outras mulheres. Despeito?

Na vila onde o povo se juntava todo pra testemunhar o nascimento dos moradores, o crescimento das moças merecia festividade de olhares, desejos, reflexões, medos. Respeito é bom pra quem gosta, mas o sabor da loucura respinga nos efêmeros[25] castelos de areia que foram expulsos do extinto vulcão! O fogo arde, mas vira cinzas ao descer a escarpada[26] montanha. E o valor das cinzas aspiradas está na agonia e no pânico que causa. É a fumaça que nos ata e não o fogo. Ele apenas nos aparta. Ironia?

Esmeralda chega ao destino. Recebe o abraço da avó, ainda no portão, e entra. Dois beijos. O dia, sôfrego[27], desaparece apressado. E a noite, sonolenta, inicia nova prontidão, refletindo a luz da vida e a malandragem da penumbra disfarçada de escuridão.

Gatos e gatunos disputam migalhas noite adentro: aqueles, sutilmente, percorrem telhados, ruas e avenidas; estes, sorrateiramente[28], desmoronam portas e janelas; surgem do nada e, sem remorsos, interrompem sonhos, criando, nas mentes traumatizadas dos que ficarem, fantasmas existenciais acerca dos que partiram. A carne podre que sobrara do lixo de Dona Zuleide, deliciosa picanha avidamente degustada por ela, recém-viúva do Dr. Jorge Farias, e pelas duas lindas filhas, é recusada pelo felino. O animal despe as latas, fustiga[29] os sacos plásticos dispersos aos borbotões[30] pelos inconsequentes moradores e zomba do lixo humano, ignorando-o. Na esquina, sobrevive, humilhada, a lixeira coletiva onde todos despejam seus excessos. Desperdício?

O bairro silencia. O som enxofre da morte parece rondar as casas, incriminando inocentes, falando futilidades e tornando o sopro da vida simples arquejar de pulmões doentios. Viver é preciso, mas o mar está de luto. Na porta principal, enseada das longínquas calmarias, Caronte a esperar o vintém a que se resumiu o valor de viver. Brevemente será prolatada nova sentença de condenação. Se a vida fosse um oceano, morrer seria o degelo cravado no cume da desilusão ao cair na ponta do iceberg.

Ouve-se o barulho de latas jogadas ao chão. Nem de longe o perfume importado de Esmeralda, comprado a duras penas em dez parcelas sem juros, lembra o odor sombrio da noite enluarada. Pesada nuvem cúmulo-nimbo[31] estende-se no firmamento – seria a núncia[32] de maus tempos?

O azedume destrói toda saliva defenestrada[33] sem pundonor[34]. Bocas ávidas. Corpos cansados. É a fluidez na noite com seus medos, encantos, surpresas. O findar é perene[35] interrogação. Continuar, demanda retoques inconclusos e traquejados com a maquiagem incrustada na face do tempo.

Cães ladram. Os ladrões, verdadeiros caninos, também estão a postos e farejam a próxima vítima. Todos estão famintos. Um homem de meia-idade, gordo, descansado, imberbe[36], lancha – está no único boteco ainda aberto nas imediações. Ambos recalcitrantes[37]. Seu Tomas, herói expedicionário da Segunda Guerra, está atento. Ele serve um sanduíche ao freguês, mas o olhar, distante, pressente o cheiro dos lobos que rodeiam a aldeia.

Uma rasga-mortalha sobrevoa a Rua Delta num voo rasante. Solta o grito. Numa das casas por onde sobrevoa a ave noctívaga, a beata Ana Peregrina faz o sinal da cruz e se benze, murmurando frases curtas, jaculatórias[38]. A moça velha tem arrepios por todo o corpo e volta a se persignar[39] por mais três vezes, rapidamente, desterrando[40] as premonições. O ex-pracinha da FEB[41] fica amuado[42], olha para o freguês e pergunta se deseja algo mais.

– A conta, apenas a conta. – é a resposta.

Conta paga. Palito no dente, retirando os rebocos da alimentação, o homem gordo, enfadado após empanzinar-se, segue pela rua acompanhado por um gato faminto. Alguns cães tentam amedrontá-lo com latidas vigorosas, mas o homem segue alheio às súplicas do felino e aos cães. Joga o palito no chão e cospe, tentando acertar o gato impertinente. Na terceira rua entra à esquerda. Apressa o passo. Olha para os lados – ninguém. Prepara-se para urinar no muro da Escola de Dona Dolores, mas é interrompido:

– É um assalto!

Calmamente, o homem ergue os braços, sem exigência dos desconhecidos, pede pra tirar a carteira e a entrega, de costas para os assaltantes. Os meliantes recebem o produto do desvirtuamento humano e saem, correndo. De repente, ouvem-se dois estampidos e um grito de espanto, dor, sofrimento. Há um corpo caído ao chão.

Os assaltantes somem. O homem imberbe guarda a arma e desaparece. Ao ouvir os disparos, Ana Peregrina pede pelas almas penadas, implorando o perdão de Deus. Seu Tomas, relembrando os tempos da guerra, das batalhas, das trincheiras, liame entre a vida e a morte, corre na direção dos disparos. Aproxima-se e encontra Pedro Delmiro, inconsolado, com o corpo esbelto de Esmeralda desfalecido nos braços.

– Mataram Esmeralda, Seu Tomas! Mataram minha princesinha, a flor mais cheirosa desse mundo!

Pelos gritos, portas se abrem, curiosas. Curiosos se achegam... E cessa a calmaria da noite.

Ao raiar do novo dia, os homens do bairro se perfilam pelas calçadas, no bar do Seu Chiquinho e demais pontos de venda, esperando o cortejo fúnebre da virgem Esmeralda que fora atingida pelas costas quando desafiava os pesadelos da noite entrelaçada aos braços do noviço amor.

Pedro Delmiro Fênix, inconsolado, desabafa:

– Linda menina, de lindas curvas. O calor da pólvora esfriou meu coração ao neutralizar o seu, mas se os cães farejam os aromas; se os gatos dissimulam o terror da noite; e os lobos aniquilam sonhos, tenho o poder de ressuscitar tudo o que amo. Com você parte minha sanidade. Sem você serei desejo: de amor, de ódio, de vida, de morte.

Todos se afastam sobressaltados. Pedro faz um gesto brusco e o calor da pólvora volta a tilintar[43] no espaço...

(Nijair Araújo Pinto)

Crato-CE, 7 de setembro de 2011.

02h17min

[1] s.f. Física. Característica mecânica que define a resistência aos choques de materiais.

[2] Fazer ronrom: o gato ronrona de alegria.

[3] adj. Que passa; que vai andando ou passando; que não permanece. s.m. e s.f. Indivíduo que vai passando. (Sin.: viandante, passante, caminhante).

[4] adj. Vão; sem importância; de pouco valor: discurso frívolo. Que gosta de coisas fúteis: espírito frívolo. Sin.: fútil, superficial.

[5] Arrufo: s.m. Ato ou efeito de arrufar. Despeito, amuo, agastamento de pouca dura, especialmente entre namorados.

[6] (latim dominicella diminutivo de domina, -ae, senhora) s. f. Senhora solteira.

[7] Tentadoras, encantadoras, atraentes

[8] adj. Que afagam; meigos, suaves, agradáveis, bonançosos, favoráveis.

[9] s. m. Ato de menear ou de menear-se. [Figurado] Manejo, manobra. Menear: v. tr. Mover de um lado para o outro. Saracotear. Mexer, remover.

[10] adj. Que tem altivez. Que não cede (a outro) em brio. Que tem muita altura e majestoso aspecto. Soberbo, arrogante.

[11] Beleza, mulher bela.

[12] Tecido de seda

[13] Delicado.

[14] Fúnebres, lutuosos. Tristes, soturnos, pavorosos, escuros.

[15] Brincalhão

[16] s. m.Qualidade de estouvado; leviandade. Estouvado adj. s. m. Que ou quem pensa pouco nas consequências. Estúrdio. Que ou quem esquece levianamente suas obrigações. Que ou quem só pensa em diversão.

[17] Peça ou marca para contar pontos no jogo.

[18] Conversação.

[19] Aberto, rasgado, decotado.

[20] Fofoca, boato, balela, rumor.

[21] Tomado como alvo, apontado.

[22] Espreitar v. tr. Observar sem querer ser visto; vigiar. Perscrutar. Espiar. Olhar demorada e fixamente.

[23] Ato de cortejar. Cumprimentos. Comitiva pomposa. Séquito. Acompanhamento. Provisão. [Figurado] Acessório.

[24] Malsinada, desvirtuada, viciada, manchada, conspurcada.

[25] Passageiros, temporários.

[26] Íngreme, empinada, ladeirenta, abrupta.

[27] Impaciente, irritado

[28] adj. Que faz as coisas com manha, à calada; matreiro. Olhar sorrateiro, olhar disfarçado, olhar oblíquo.

[29] Fustigar: v.t. Bater com alguma coisa flexível; vergastar, açoitar: fustigar um cavalo com uma chicotada. Bater com força, falando do vento, da chuva, do granizo etc. Forjar, soldar o ferro. Fig. Ferir com palavras sem réplica: fustigar alguém com uma advertência.

[30] Golfadas, lufadas, aos montes.

[31] Nuvens precursoras dos maus-tempos, tempestades. Fig. Sinal de azar.

[32] Anunciadora, mensageira precursora.

[33] Defenestrar: (francês défenestrer) v. tr. e pron. Atirar(-se) pela janela. v. tr. [Figurado] Livrar-se de alguém. Afastar.

[34] (espanhol pundonor) s. m. Sentimento de dignidade, brio. Amor-próprio, honra. Recato, decoro. Pudor.

[35] adj. Que dura muitos anos; eterno. Diz-se de rio, de fonte que não seca nas estações estiosas.

[36] adj. Que não tem barba.

[37] adj. e s.m. e s.f. Que ou quem resiste obstinadamente. (Sin.: obstinado, opiniático, cabeçudo, teimoso, insistente. Antôn.: dócil, obediente, flexível, brando, tratável.)

[38] s. f. [Religião católica] Orações curtas e fervorosas.

[39] Benzer

[40] Banindo, exilando, expatriando.

[41] Força Expedicionária Brasileira.

[42] Incomodado, melindrado.

[43] v. intr. Fazer telim. Soar como campainha ou dinheiro. Telintar.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 28/03/2012
Reeditado em 28/03/2012
Código do texto: T3580991
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