Anseio
A porta abriu-se e em seguida ecoou o som do movimento das matérias; chaves ,dobradiças, tapete sendo empurrado.
Nada que abisma, senão o silêncio que se fez em seguida. Certas vezes o silêncio zomba mais que palavras.
O vento enfiava aproveitando o vão escancarado da porta,
trazendo ruídos a constranger idéias. Era chuva que viria e mudaria o cenário, oportunamente renovaria movimentos, portanto com o novo sentido do tempo era necessário que se apressasse.
E em tempo, a viajem não começaria ali_ a despeito de quem pensa que começa no transporte que arremessa caminho adiante, ela de fato começa no desejo de ir _ainda que sucumba no instante da partida.
As malas estavam lançadas ao canto da sala. Optou por levar uma bagagem de mão e em outra apenas o essencial ...entendia que a liberdade de ir e vir pressupunha em livrar-se de matérias, luxurias que só te colam ao chão; parafraseou Saint-Exupéry“ o essencial é invisível aos olhos”.
Às malas, ela se fez chegar , ergueu-as em movimento nada repentino e comedidamente lançou o rosto ao redor como num relapso final, tentava segurar as últimas imagens com o olhar.
Era o retrato da partida, a vida dispostas em retratos, aqueles que as escolhas lhes concedem. Imagens fragmentadas, segundos depois novo eixo, novo ângulo, sob nova luz.
Deixava a pintura da parede gasta, a tinta desbotada fazia uma nova cor meio surrada,fazendo contraste com as gravuras de vibrantes cores, as imagens nunca clareavam em função do vidro bem empregado sugerido pelo senhor das molduras. _
Naquele instante, ela lembrou-lhe a face; a face do senhor das molduras_ a boca que projetava para o lado como se rasgada a um sorriso que nunca se desfazia. Balançando a cabeça ,desviou o pensamento que vagava ao léu em coisas que nada acresciam naquele segundo de vida.
Rodopiou num assoalho proeminente, um conserto que ficara por fazer, novamente balançou a cabeça se cobrando pelas coisas mal resolvidas,seu pensamento não tardou,finalizando assim – Um taco... De que vale um taco em meio a tantas tacadas pela vida?
Nesse rodopiar ela virou ao alto, o branco do teto agora lhe tomava por inteira, aberto como um manto a cobrir-lhe a cabeça, isso lhe agradava, sempre agradava.
Fagulhas das luzes lhe piscaram os olhos, reflexos da lapidação dos cristais . Projetava sombras que faziam desenhos cromáticos proveniente das velas com luzes amarela, sabia disso, da teoria da cor.
Lembrou-se do dia da compra do lustre do século XIX trazido de um antiquário e da cômoda bombée estilo francês Luiz XV que não pôde trazê-la:desejo suprimido - lembrou dos entalhes, da pertinência do artesão, da madeira maciça folhada a rádica, marchetaria floral, puxadores em bronze e o brilho gasto do mármore verde no tampo.
Sabia que o lugar no hall de entrada sempre ficaria faltoso sem a sonhada cômoda _ mas _ sem desdenhar colocou ali uma mesa colonial mineira servindo de aparador.
Aparador, aparas, para... Sentiu, pensou como parar a dor?
Viveu envolta a uma redoma cristalina,viu a vida passar sem se sentir atormentada.
Ficou entregue ao caos da tristeza sem saber o doce da vida lá fora, o gosto, o aroma.
E com o gosto na boca,do hall seu olhar se perdeu na cozinha, lembrou a mocinha empregada despedida na véspera; ela e o motorista , os dois se roçavam ali mesmo, de fronte ao fogão, em meio ao cheiro de manjericão e alecrim, o moço sempre com a desculpa de tomar água e sempre tomava da água que mata a sede carnal. A mocinha sempre favorecia um remelexo a mais.
Ela a patroa muitas vezes, os surpreendiam mas deixava se ficar oculta, sentindo no seu canto a controvérsia, entre a autoridade e austeridade, ou a condolência. Tinha ficado mais mole na vida... Queria esmerilar que amor não merecia ser tolido.
_Como que acordando do pensamento, virou-se novamente ao aparador, onde na quebra do vazio, aparava uma imagem de Santana. Essa era reserva de família, ficou ali anos a ostentar toda a sala, era impossível atravessar sem olhar pra ela, como se tomasse conta da caminhada, como se descobrisse pensamentos, até estes seus desejos reprimidos tão contrariamente opostos ao da moça arrumadeira
O vento bateu a porta, a que estava aberta à lhe aguardar, notou o som que ostentava a dobradiça enferrujada _agora sem chamejar,rompeu o vão da porta,rumou-se_ proferindo o que ansiava fazer.
Estava nos jardins, passou pelos maciços de agapantos, o tom azulado da flor, enlevava o tom verde musgo das folhas lanceoladas e encurvadas como se reverenciasse sua passagem por ali,sentiu reconfortada por isso. Mais a frente precisou com um movimento desviar-se das trepadeiras esgalhadas, estas lhe queriam profusamente impedi-la a marcha de sair.
Deixava o abençoado jardim, que tanta companhia lhe fez, deixava a terra cavucada, os rebentos da clorofila e da falsa-Iris, bulbos aguardando plantio,passava por caminhos que se apertavam mediante a flora desordenada crescida_ o jardineiro se foi e outro não foi ministrado, mas a ela não incomodava o ar natural que lembrava bosques,embora escondia detalhes,as molduras dos muros os vasos a fonte transmitindo abandono e a pintura de influência toscana esfarelando nos cantos.
Olhou o banco que sentava; leituras ao entardecer ao som do silêncio.
Com olhos amenos avistou acima um alvoroço de pássaros num céu de cinzentas nuvens, pinceladas por manchas marrons aparentava o peso da água que cairia, mais um clique, outro retrato a guardar na folhas da memória.
Estava melancólica, nem sabia por que_ não era uma despedida pra sempre;
Por certo no mês seguinte estaria ali.