Imagem: Maria Inez F. Pedroso

       
           
 Últimos Versos

 
 

     Quando soube que o prédio seria implodido sentiu o coração aos pulos, a emoção tomou conta e chorou. Lágrimas escorriam pela face enquanto cenas passavam em sua mente como um filme.

     A escadaria na qual a conhecera. A sacada onde a beijara pela primeira vez. O apartamento onde viveram 10 anos, até o dia em que chegou em casa e não a encontrara. O entendimento do que havia acontecido quando lera o bilhete  deixado sobre o livro de Neruda e aquela palavra que jamais esqueceu: “Adeus.” A insônia daquela noite que  pareceu ter durado cem anos. As inúmeras vezes que lera o bilhete para entender os motivos que a levaram a tal atitude. A decisão de ir embora, pois não suportaria mais viver naquele prédio, sofreria muito se permanecesse.

     Após a noite que passara em claro, mudou-se levando apenas  o quadro com a fotografia  preferida na qual ela estava linda com o vestido branco que lhe dera de presente e aquele sorriso que o fizera se apaixonar na primeira vez em que a viu; a mala com roupas, documentos  e objetos pessoais e o livro de Neruda.

     Não quis  se casar novamente. Depois daquele dia, e daquele bilhete, começou uma estranha mania. Antes de dormir recitava versos de Neruda em frente ao quadro com a fotografia dela.  “Tira-me o pão, se quiseres, tira-me o ar, mas não me tires o teu riso.” Depois deste verso, que dava início ao ritual noturno, recitava mais alguns e ia dormir.

     Visitava frequentemente a biblioteca, retirava os livros e copiava versos em um caderno.  Lia-os sentado na praça, no elevador, no coletivo urbano, aonde quer que fosse recitava versos. Assim espantava a solidão e amenizava a dor da saudade. Era visto sempre com o caderno. Inicialmente, as pessoas pensavam que ele havia enlouquecido de amor, com o passar do tempo paravam  a  ouvi-lo.

    Certa noite, encontrou no elevador um casal de namorados, cumprimentou-os e recitou: “Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela. E o verso cai na alma como no pasto o orvalho. Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la. A noite está estrelada e ela não está comigo.”  O casal, que já sabia da estranha mania, o aplaudiu.
_ Lindos versos, seu José. Quem é o autor? Surpreso pela atenção da moça, respondeu:
_ Neruda. 

     Antes de sair do elevador ouviu:
_ Tchau, seu José Neruda.  A partir daquele momento passou a ser chamado de José Neruda.

 
     Hoje, passados 20 anos,  estava em frente ao prédio. Vestia sua melhor roupa que fora preparada com cuidado, pois sabia que viveria um momento especial. Foi um dos primeiros a chegar ao local. Logo que avistou o prédio sentiu as lágrimas. Deixou que viessem. Ele não conseguiria impedi-las. E elas chegaram abundantes. Não percebeu os olhares dos curiosos. Chorou copiosamente, abraçado a uma sacola e olhando para o prédio. 

     Alguns minutos antes do meio-dia, abriu a sacola, tirou o quadro com a fotografia e o beijou demoradamente; retirou do bolso da camisa  o bilhete amarelado e o rasgou. Ante o olhar surpreso das pessoas recitou quase gritando “Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda. É tão curto o amor, tão longo o esquecimento”.   Passou correndo pela área de segurança e jogou o quadro na escadaria  do prédio no exato momento em que implodiu. Em meio à nuvem de pó ouvia-se a voz recitando “a minha alma não se contenta por havê-la perdido. Embora seja a última dor que ela me causa e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo”.  

     O prédio e suas histórias; José Neruda e seus versos, nunca mais foram vistos na cidade.



Obs.
Os versos entre aspas são de autoria de Neruda.
 
Maria Inez Flores Pedroso
Enviado por Maria Inez Flores Pedroso em 24/03/2012
Reeditado em 24/03/2012
Código do texto: T3573909
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