Luiz Cobra e a cachaça

Filho de dona Amélia, senhora que ganhava seu sustento lavando roupa para fora, proprietária por herança de uma casa de madeira e coberta de palha erguida em um grande terreno da Rua Antônio Augusto, Luiz Cobra vivia bêbado. Não sei se o Cobra era apelido ou sobrenome. Encanador, dos bons, fazia pequenos serviços por todo o bairro da Aldeota, isto nos anos 50 do século 20. Todo dinheiro que ganhava desperdiçava com a bebida. Trabalhava terça e quarta-feira e bebia de quinta a domingo. A segunda ele passava dormindo, curando sua ressaca.

Meu pai gostava de ficar sentado, após o jantar, em uma cadeira de balanço colocada na calçada na frente da nossa casa. Naquele tempo não havia televisão e era costume de todo e qualquer cearense sentar-se à calçada para aproveitar a brisa que todo final de tarde e à noite sopra na cidade de Fortaleza. Aos sábados, como não trabalhava, a cadeira e ele iam mais cedo para a calçada. De pijama - calça comprida listrada e camisa de manga também listrada, de chinelo e já tomado banho, ele ficava ali até a hora do jantar. Todos que passavam pela calçada paravam para uma prosa. O padeiro, que trazia pão gostoso e quentinho, era um dos que mais demoravam. Eu ficava admirado como aquele homem, tão pequeno, conseguia carregar aquele balaio enorme de vime e ainda cheio de pão. Como proteção, ele usava apenas uma rodilha de pano, que colocava sobre o ombro.

Voltando ao Luiz Cobra, sujeito pequeno e magro, era também um dos companheiros de prosa do meu pai. Diferente dos outros, ele chegava antes e sentava-se no meio-fio da calçada, esperando que o dotô Aluísio aparecesse com a sua cadeira de balanço. Já bêbado Luiz Cobra mexia – intimava, no dizer dos cearenses - com todos que passavam:

- Meta dos peitos, dizia ele. Aqui só respeito o dotô Aluíso, completava.

Meu pai sempre pedia para ele deixar as pessoas em paz. Ele baixava a cabeça e ficava por algum tempo completamente mudo, para depois voltar a falar palavras sem nexo e a xingar os passantes. Os que por ali passavam já estavam acostumados com aquela cena e não se importavam. Só os adolescentes, que passavam correndo e gritando – Olha a cobra bêbada, vamos pegar a cobra bêbada! Luiz Cobra não esboçava reação alguma, a cachaça não deixava.

Certo sábado, 17 horas, no ambiente da calçada da Rua Antônio Augusto estavam sentados meu pai, em sua cadeira de balanço, seu Furtado, vizinho e amigo de meu pai, duas pessoas das quais não mais recordo os nomes, e Luiz Cobra, como de costume sentado no meio-fio da calçada, completamente bêbado. Mesmo assim não perdia uma só frase dos diálogos travados entre os quatro amigos. Vez por outra Luiz Cobra emitia algum som pela garganta e balançava a cabeça. Ora parecia concordar com o que acabara de ouvir, ora discordava.

Como já disse, em frente da minha casa havia um terreno grande, de propriedade de herdeiros, entre eles dona Amélia, mãe de Luiz Cobra. Nele havia plantado um cajueiro, uma mangueira, um pé de azeitona preta, várias goiabeiras e um mamoeiro (Carica papaya, L., da família das Caricaceae) de caule bastante fino e alto, que naquele período do ano carregava bastante, embora floresça e frutifique muitas vezes ao mesmo tempo e durante o ano todo.

Olhando para o dito mamoeiro, meu pai percebeu que um de seus frutos estava completamente maduro. Ele, que gostava muito dessa fruta e sempre no café da manhã fazia questão de comer uma porção, apontou em direção ao mamoeiro e falou para os amigos: - Aquele mamão está maduro, mas se cair vai se espatifar no chão. Se ficar lá, os passarinhos vão comê-lo. Se eu tivesse uma vara comprida eu iria até lá para pegá-lo - completou.

Todos olharam para o local apontado, mas como era impossível alcançar aquele fruto, continuaram conversando e não reparam que Luiz Cobra, com esforço, se levantara e se dirigira para o pé de mamão.

Alguns minutos depois os amigos perceberam que havia alguém tentando subir ao mamoeiro. Era o Luiz Cobra, que mesmo estando embriagado foi tentar conseguir aquele fruto maduro para o dotô Aluíso, a que ele dizia proteger e atender a todos os seus pedidos e mandados.

Todos ficaram apreensivos, pois o mamoeiro não suportaria o peso do encanador e, mesmo que aguentasse, ele, no estado de embriaguez em que se encontrava, não conseguiria ficar agarrado por muito tempo àquele tronco fino e alto. A queda era iminente.

Meu pai correu para impedir que Luiz Cobra continuasse a subir, mas não deu tempo para ele concretizar essa ação. Uma forte pancada se fez ouvir. Segurando fortemente o mamão, jazia Luiz Cobra ao pé do mamoeiro. Todos correram em seu socorro, meu pai mandou chamar um carro de praça, não havia taxi por aqueles anos em Fortaleza, colocou-o no assento de traz do veículo e rumou para a Casa de Saúde. O diagnóstico foi de apenas algumas costelas quebradas, que o faria ficar ali internado por duas semanas. Nesse intervalo sua caixa torácica seria engessada, para a consolidação de sua estrutura óssea.

De volta para casa, Luiz Cobra prometeu não mais beber, e cumpriu. Infelizmente, em consequência da queda outras complicações surgiram. Pouco tempo depois ele foi acometido de pneumonia, vindo a falecer no final do ano seguinte, consternando muitos dos moradores daquele trecho da Rua Antônio Augusto. Meu pai ficou muito sentido e passou algumas semanas sem colocar sua cadeira de balanço na calçada. Seus amigos de prosa, depois de muitas tentativas, conseguiram fazê-lo retornar ao seu hábito de sentar-se na calçada nas tardes frescas de nosso bairro.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 24/03/2012
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