Ei, eu também estou falando!

(Este episódio aconteceu e foi por mim relatado ao Sérgio Wesche, nos idos de 1985, que com sua verve humorística o transformou em história. Sua publicação aqui neste espaço é uma homenagem ao amigo e colega de instituição, que ainda muito cedo foi levado para a eternidade.)

Sou filho caçula do casal Nunes Cavalcante. Nasci prematuro e estou com dez meses de idade. Papai é hiper prestigiado pesquisador de um importante órgão do governo. Mamãe é secretária-executiva neste mesmo órgão. Como vocês já devem ter percebido, sou bem-nascido e tenho um Q.I altíssimo. Gosto muito da minha irmã Soninha, que canta para eu dormir e me carrega no colo. Meu irmão Alaor é um chato. Belisca minhas bochechas com força e eu não gosto disso. Nem aviso nada para ele; quando eu crescer, minha vingança será maligna!

Estamos todos saindo de férias. Mamãe falou que vamos para Fortaleza e acho que já está na hora, pois vejo um ônibus estacionado aqui na plataforma nº 4 do terminal rodoviário de Belém. Papai está colocando as malas no bagageiro e as pessoas já começaram a embarcar. Opa! Papai está voltando e lá vamos nós!

Soninha e Alaor sobem na frente. Agora vamos eu e mamãe. Quando ela me envolve assim em seus braços, me sinto como se ainda estivesse no útero dela. É tão bom! Papai vem logo atrás, está entregando os bilhetes de passagem ao motorista. Onde estão nossas poltronas? Hum! Soninha e Alaor já estão sentados, deve ser ali perto deles. Tomara que Alaor não venha beliscar minhas bochechas durante a viagem. Se ele fizer isso juro que vomito na mão dele. Papai chegou e se reúne a nós. Agora que já estamos todos acomodados, o ônibus começa a deslizar no asfalto.

Estamos partindo exatamente às 20h30min. Conforme estava previsto, segundo ouvi papai dizer à mamãe. Viajo ora no colo de um, ora no colo de outro. Mas o que eu gosto mesmo é de ficar pulando na poltrona, sobre eles.

A nossa frente seguem Soninha e Alaor; logo atrás tem um homem gordo, careca, sentado perto da janela e parece dormir. Ao seu lado, um jovem lê história em quadrinhos. Deixem-me ver se consigo decifrar o título. Hummm... “Aventuras de uma advogada executiva em Rondônia”, de um tal de Sérgio Wesche e desenhado por um certo Luiz Cláudio.

Agora, uma a uma, as luzes sobre as poltronas começam a ser apagadas. Acho que as pessoas já vão dormir. Mamãe me puxa e me agasalha no colo. Sinto que é hora de mamar. Depois também vou tirar um cochilo. Boa-noite, amigos.

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Poxa, como gente dorme! Já estou abelhudando por sobre as poltronas, e ninguém me percebe. Mas, que movimentação estranha é aquela ali na frente? Vejo uma senhora se abaixando e ao seu lado tem algo coberto por um lençol branco. Não dá para ver direito daqui, sou muito baixinho. O que será isso? Não estou entendendo! A senhora lá da frente se levanta com algo na mão. Parece aquilo que a vovó coloca embaixo da cama antes de dormir. Sim. É um penico! A mulher está abrindo a janela e despejando o conteúdo fora. Mas, que líquido marrom e viscoso é esse, que vejo pela janela passando lá fora? Parece... parece...

- Mas que droga! Isso é hora de se comer feijoada? E podre ainda por cima!

Vocês ouviram isso? É o homem gordo e careca aí atrás, que dormia com a boca e janela abertas. Ih! Isso vai dar confusão. Todos acordam, e se levantam das cadeiras falando ao mesmo tempo.

- Mas não se pode dormir direito nesses ônibus?

- Que barulheira é essa?

- Isso é uma agressão aos direitos humanos!

- E que diabo de fedor é esse?

- Aquela mulher ali estava com um penico na mão e jogou tudo pela janela. Eu vi!

Eu também vi, mas não vou me meter nessa confusão. Mesmo porque ninguém entenderia minha linguagem. Ih! Estão avançando em direção à pobre mulher.

- Por que a senhora fez isso? Não percebeu que poderia sujar alguém?

- E sujou! Olhe eu aqui todo respingado!

- Meu senhor, pelo amor de Deus, me desculpe. É que minha mãe já é bem velhinha, tem oitenta anos! Ontem tomou caldeirada de peixe e acho que lhe fez mal.

- Ah! Então foi caldeirada de peixe e não feijoada?

- Também, meu senhor. Foi feijoada e caldeirada de peixe o que ela comeu! Acho que o peixe estava estragado.

- Péra aí! A senhora tá falando comigo é? Tenho um talho de peixe lá no Ver-o-peso, mas nunca vendi peixe estragado!

- Atenção “galera”, o negócio é o seguinte: sou o “motora” desse ônibus, num quero sabê de “agito” aqui, “morou”? Madama, a “coroa” aí já num tem mais idade pra cumê essas porcarias”!

- Eu sei, seu motorista. Mas ela é teimosa! Não resiste a uma caldeirada de gurijuba lá de Vigia.

- Tá legal. Toda vez que a sua “coroa” tivé uma caganeira dessa, me dê um “plá”, que eu paro o ônibus. Aí, esse cara fortão aqui vai lhe ajudá a levá ela pra fazê suas necessidade. Tu pode fazê isso, malandro?

- Faço, porque se eu ficar sujo desse negócio, vou sair quebrando tudo nesse ônibus!

- Podi crê, “respingado”, vai ti lavá lá atrás! Na próxima parada, vou pidi pra limparem as janelas. Agora vamo em frenti porquê “barco parado, num faz freti!”

Poxa, tanta confusão só por causa de um cocozinho! Também faço isso lá em casa e não tem essa briga toda. Já estou percebendo que vou ter que aprender muito com os adultos, mas vou fazer o possível para não me tornar nervoso e descontrolado, assim que nem eles. Podem apostar nisso.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 24/03/2012
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