Meninos de rua: a noite
O Recife agora está calmo, o vento sopra lentamente por entre os prédios e casarios antigos. O Céu estrelado acompanha atentamente o movimento cá embaixo. As luzes amareladas nas avenidas empurram um clima preguiçoso da madrugada, uma brisa fresca cheira à maré. Poucos carros insistem na travessia no centro da cidade. O rastro do dia ainda está para se recolher. Num canto a outro, a presença de vendedores de confeitos, com seus fiteiros abarrotados de pipocas, chicletes e cigarros velam a noite dos meninos de rua. O rádio de pilha toca as músicas da noite, embalados pelo batuque de dedos do vendedor.
Os becos, sempre escuros, escondem um pouco da história da cidade. Ali estão eles, espalhados pela escuridão. Noturnos, vagam de um canto a outro arrastando suas vidas sem eira nem beira como se a noite os obrigasse a isso. Caminham entorpecidos, fumados, suados. Muitos escolhem dormir, outros apenas deitar e rolar a noite inteira pelas calçadas. Começam um papo menino, um papo menino de rua, o que fizeram e deixaram de fazer durante o dia. As sortidas erradas que deram e levaram a pior. A tapa na cara, sinal peculiar da injustiça se fez presente. Não choram, simplesmente sentem aquela dor e partem. Juram aqueles infratores de morte, jogam pedras, esperneiam e se vão. Eles com a vida e a vida com eles, num movimento circular pela cidade.
O jogo de futebol também não está fora das atividades. O centro nu, com suas ruas largas, é um bom motivo para exercitar as canelas finas. A agilidade do dia, misturada com a ginga da noite vai formando os times. Pequenos, grandes, magros, pretos, brancos e amarelos, as equipes são um misturado só. Até parece time da liga espanhola de futebol. Tem brasileiro, gregos e troianos. Aqui se distinguem pela cor, pela magreza, pelo talento e pela ânsia de conquistarem a bola. Entre uma partida e outra o cigarro é aceso. O fôlego não é o mesmo de nossos atletas, mas são iguais na resistência. Até são iguais na desgraça. Exaustos cheiram um pouco da cola que sobrou do dia e adormecem o corpo.
Lá de cima a noite guarda seus movimentos, a sua dormida, os seus sonhos e desencantos. O velho lençol desce como uma cortina por sobre seus corpos suados. Cortina de um teatro real, de diferenças abissais entre as suas e as nossas vidas, fomentada por um estado de coisas como a televisão e a sociedade de consumo. Sociedade de consumo que nos consome.
Não tem galo para acordá-lo o dia. As buzinas dos carros avisam que a noite dormiu embalada pelos raios do sol.