"Zóiazu"
Meu pai é um homem inteligente, sim essa é a primeira qualidade que me vem a mente ao falar dele, mas não é a única. A palavra “inteligente” com certeza é pobre para descrevê-lo.
Ele possuiu inúmeros adjetivos: honestidade, bondade, mansidão , domínio próprio...
Sim parece uma pessoa que possuiu o fruto do Espírito, narrado na bíblia. Mas são mesmo atributos que ele possui. Além é claro da beleza física: alto, forte, olhos azuis e porte de ator de cinema.
Vocês devem pensar que estou exagerando, coisa de filha coruja, mas quem conheceu meu pai pode confirmar. Tenho inúmeras pessoas que com certeza concordariam comigo. Tudo bem, admito que sou suspeita. Mas preciso escrever sobre isso, pois acho até que fiquei devendo algo assim para ele.
Meu pai já se foi desse mundo, faz bem uns vinte anos. Se minha irmã caçula ler isso ela dirá a data e a hora exatas, ela com certeza lembra, mas eu sou péssima em datas. Pensei até em escrever um diário usando minha agenda, pensei em anotar os acontecimentos do dia, mas ainda me falta a determinação necessária.
Muito bem, voltando ao meu pai... Disse que devo a ele essa história, porque há muitos anos, quando eu e meu marido íamos nos mudar de cidade, fui a casa de meus pais para me despedir dele. Ele estava fraco e magrinho, deitado na cama. Seu pijama muito limpo e bem passado, obra dos cuidados de minha zelosa mãe, rodava em torno de seu corpo magro. Porém, como pude notar ainda era muito elegante. Suas mãos de dedos compridos colocadas como era seu hábito sob as nádegas, as pernas cruzadas em uma pose aristocrática. Comentei depois com meu marido, como meu pai apesar de estar tão doente mantinha a dignidade e elegância. Na verdade a elegância dele era algo que vinha de dentro, era a exteriorização daquela alma tão digna e honesta que fazia com que ele parecesse um verdadeiro nobre.
Naquele dia, ele muito sabiamente, julgou que não me veria mais nessa vida e de fato morreu exatamente uma semana depois que me mudei. Ele me disse brincando: _Você está parecendo aquele sujeito (essa era sua maneira de falar) do interior de São Paulo, que mudou para a capital, viajando uma semana de caminhão, e quando chegou lá recebeu a notícia de que o pai havia falecido, e protestou: “Droga, porque não morreu antes de eu sair de lá? Agora terei que encarar mais uma semana de viajem de volta”. Nós dois rimos, mas ele passou a me falar de algo que o incomodava mais que a certeza da morte iminente. Ele me disse que se arrependia de não ter sido mais eficiente na arte de ajuntar dinheiro. Disse-me que tinha facilidade em resolver os problemas dos ricos fazendeiros em suas fazendas. Problemas que eram impossíveis para alguns, para ele era fácil como descascar uma fruta. Então por isso, nunca soube cobrar o que o trabalho valia. O lamento dele era por não ter por isso, dado a nós, o conforto que ele poderia ter dado. Naquele dia eu disse a ele: Papai, o senhor não ajuntou dinheiro, mas a bíblia diz que devemos ajuntar tesouros no céu, e isso o senhor fez. Ele me encarou com seus doces olhos azuis. Pensou por uns segundos e falou-me: Não acredito que esses eu também tenha sabido ajuntar. Eu respondi com sinceridade: _Sim papai, o senhor com certeza ajuntou tesouro no céu.
Não lhe dei nenhum exemplo, pois na hora não me pareceu necessário, mas teria inúmeros casos para exemplificar que ilustrariam as vezes em que meu pai depositou nos cofres do céu sua moeda de ouro.
Uma das histórias bonitas que me lembrei hoje durante o café da manhã, enquanto eu e meu amado marido conversávamos, é a que deu esse estranho nome a esse texto: “Zóiazu”.
Quando eu era criança, tínhamos uma vizinha bem velhinha e pobre, que morava numa humilde casinha alugada, com chão de terra batido e fogão de lenha. Seu bem mais precioso era o filho adulto, mas com a mente de uma criança. Seu nome era Geraldo, e sua mãe também era para ele, a única posse na vida.
Ele sempre vinha em nossa casa, conversar com meu pai. Ficava até tarde da noite contando histórias que só meu pai entendia. As palavras eram um som gutural e incompreensível e ele ainda por cima gaguejava muito. O nome do meu pai era impossível a ele pronunciar: Frederico. Ele tentou, mas o som não saia de forma nenhuma, então ele inventou um nome para falar com meu pai: “Zóiazu”.
Um dia, como não poderia ser diferente, a mãe do Geraldo morreu, e ele ficou só no mundo. Meu pai então passou a cuidar dele. Todas as noites ele vinha jantar em nossa casa. Passava o dia na rua, ás vezes aparecia todo machucado e esfolado. Meu pai se indignava, acolhia o pobre coitado e pedia que minha mãe lhe servisse a comida.
Em alguns desses dias ele chegava e chorava, lamentava ainda a morte da mãe, apesar dela ter morrido já há anos. Enquanto chorava, e comia, ele dizia: Minha mãe morreu Zóiazu. Era triste de ver a dor e a solidão expressadas em suas lágrimas. Meu pai consolava, ele se acalmava e se ia.
Depois de uns anos, começou a trazer de presente para o meu pai uma lâmpada. Ora estava queimada, ora estava funcionando. Ele sempre pedia para testar, e quando acendia ele sorria satisfeito por ter trazido algo bom, quando não acendia prometia que a próxima acenderia. Meu pai ficou intrigado com a origem dessas lâmpadas e perguntou quem as dava a ele. Ele inocentemente apontou para o morro cujos pés se formara a cidadezinha onde morávamos. Então meu pai entendeu de onde ele estava tirando as lâmpadas. Era da cruz de madeira que a noite iluminava o morro, um monumento singelo, mas que era o orgulho de nossa cidade. Meu pai repreendeu-o, deu-lhe um sermão digno de um pai. Disse-lhe que aquelas lâmpadas não podiam ser tiradas de lá, que isso era o mesmo que roubar. Que nunca mais ele deveria trazer para ele aquelas lâmpadas. Ele ouviu num silêncio respeitoso e de fato, nunca mais tornou a trazê-las, e ainda repetia o discurso do meu pai dizendo o quanto era feio roubar.
Com certeza a atitude de respeito de meu pai para com esse rapaz, era um depósito que ele fazia e servia para ajuntar os tesouros no céu.
Meu pai é um milionário.