Refúgios íntimos

1

Vazio... Sente-se assim, perdendo o interesse por tudo, num pessimismo natural à idade? Mas, pessimismo ou realidade em encarar tudo pela frente, com coragem? Ah, como se definir? O fato é que se sente desanimado, como se entregando, deixando-se vencer e...

- Vado por que não sai um pouco, vê o mundo de fora? Desse jeito você acaba adoecendo.

Sem se voltar, ele responde à indagação repetida da mulher, numa preocupação de boa companheira que com tudo fica “encucada”, num zelo exagerado:

- Depois eu vou dá um “giro” por aí.

Ela sorri, entendendo-o, na desculpa de outras vezes:

-Depois, depois! Você tem de reagir homem! Ficar nessa cadeira se balançando, pensando, pensando... Como se isso resolvesse.

Não, ele não mais lhe dirá nada. A gente tem o nosso mundo, refúgio, defesa contra tudo... Sorri e impulsiona o corpo magro para trás, cadenciando-se.

A mulher retrocede ao interior da casa. O Vado está mesmo velho: de idade (completou 70 anos no mês passado) e de espírito. A vida com suas metamorfoses. E lembra-se do pai, o Seu Gonçalves, que costumava dizer, na conclusão prática:

- No decorrer do tempo, a gente vai acompanhando as mudanças, no físico e no modo de pensar e... Tudo passa!

Verdade, pura verdade.

- Bom, deixe-me ir cuidar do presente.

Adentra na cozinha e acendendo o fogão, põe a vasilha com o feijão para cozinhar.

- Pobre do meu Vado. Quem já foi alegre, levando a vida na gozação... Eita vidinha!

Tampa a vasilha e abrindo o refrigerador ao lado, busca a verdura para a salada.

De uma residência nas proximidades chega o som alegre da música do “forró”, sucesso do momento. Sim, haja o que houver, as coisas têm o seu próprio caminho, egoisticamente determinado.

2

O pai naquela cadeira, se balançando, ali na varanda. A mente desocupada, num jogo de reflexões. A mãe cuidando da casa, buscando preencher o tempo com os afazeres domésticos... Seus velhos, nos últimos dias. Essas metamorfoses são cruéis e saber...

- Pensando em quê, minha esposa?

A voz do marido, o Nildo, ao lado, buscando conversa, libertá-la do seu mundo íntimo e ultimamente, tão procurado.

Conservando a atenção ao vidro sobre a direção, ela então sorrindo, responde:

- Nada não, besteiras minhas.

Ele agora sorri e retorna a falar:

- Você está ficando parecida com o seu pai: calado, pensativo, isolando-se... É a voz do sangue, numa repetição.

Aí ela exclama entusiasmada:

- “É a voz do sangue”. Nildo que frase bonita, expressiva!

Ele nada comenta. Fugitivo, como sempre, ao ser entendido ao expor assim de repente, o seu mundo íntimo.

- Mas, vamos apressar o carro. Sem tardar, isso aqui estará num “engarrafamento” de encher a paciência de qualquer cristão!

- Falou e disse Nair.

Sorrindo, ela avança seguida por outros veículos, já de faróis acesos, como os primeiros olhos noturnos. E aqui e ali, as luzes dos edifícios se acendem, numa saudação romântica à noite que desponta, com suas alegrias, tristezas e mistérios, enquanto o casal segue num repentino e necessário silêncio de seus refúgios íntimos.

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 20/03/2012
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