Colegas de angústias

1

Maria entende. Conhece bem o pessoal daqui do Salão (o coração da fábrica) de Produção. Seu Genildo está se “engraçando” dessa novata, a Telma. Seus passeios, os olhares disfarçados, o sorriso simpático... E sendo um dos chefes da produção, a conquistará, terminará por “engabelar” a mocinha e depois, surgirão às conseqüências... Mas, deixa pra lá! Ninguém tem nada com a vida alheia. Cada um que se cuide. É o sensato. A voz prática do mundo.

Trabalha cabisbaixa, costurando as caixas.

Ao lado, a novata também. Morena, de rosto afilado, olhos negros, cabelos estirados, longos, os braços compridos. Uma jovem interessante. Tipo brasileiro. Bonita mesmo.

Seu Genildo se avizinha:

- Boa tarde.

Telma sem erguer a cabeça, responsável, responde sorrindo, fazendo as graciosas covinhas nas faces mais coradas:

- Boa tarde.

- Está gostando daqui?

Maria escuta. Entendendo. Quase sorrindo também com o que entende, com o futuro previsto.

- Estou sim, senhor.

- Aqui é bom. Trabalhe e será recompensada...

A frase maliciosa da indireta? Maria sem mais se conter, sorri. A novata que se cuide... E, se a prevenir, num gesto de coleguismo?

Então a sirene apita, anunciando o fim do expediente.

As funcionárias se erguem das cadeiras de encostos e se encaminham ao banheiro próximo, onde após o banho, trocam a farda pela rouca vinda para o trabalho. Depois, batem o cartão e deixam à indústria, para no dia seguinte pela manhã, tudo recomeçar.

Maria novamente sente o desejo de alertar a colega, contudo...

- Melhor ficar na “minha”.

Adiante, o corpo esguio, bem-feito, nas calças justa branca se move nos gestos que lhe revelam a graça feminina, que é um convite ao pecado entre os operários.

2

O automóvel estaciona.

A novata apressada entra e em velocidade o carro arranca.

Maria tudo observa, aqui na parada dos coletivos, aguardando aquele que a conduzirá às proximidades da casa, no Bairro de Linha do Tiro.

Telma está saindo com o seu Genildo. Caiu em sua “rede”. O homem é terrível! Com a mão aberta acena ao ônibus que acaba de virar a esquina, adentrando na avenida.

O coletivo pára e Maria com outros operários entra. E o ônibus parte, na noite recém-nascida.

Nas calçadas laterais pedestres caminham, regressando aos lares. No morro por trás das residências conjugadas nessas laterais, as casinhas de luzes acesas, emprestam uma visão poética, dentro de sua pobreza operária.

Com certeza, a Telma e seu Genildo terminarão a noite no leito dum motel...

- Com licença.

- Pois não.

Maria afasta-se à frente e o homem passa, tocando-a com o corpo gordo, quente, suado. Ah, se não precisasse passar por tudo isso, mas, um dia (quem sabe?) livrar-se-á dessas cenas.

O coletivo avança, aproveitando o tráfego ainda descongestionado.

A cadeira se desocupa e Maria ocupa-a.

- Ainda bem. Nem tudo está perdido!

A mocinha ao lado sorri, aquiescendo.

3

O porteiro puxa conversa:

- Maria aquela morena bonita, a Telma, saiu no “corte” da semana.

- O quê?

A perplexidade. O silêncio da incredulidade e o homem sorrindo sarcástico:

- Dizem às más línguas que o “Homem” curtiu, curtiu com ela e enjoou...

Maria então, recupera a voz, de volta ao presente:

- É sempre assim...

Em seguida, bate o cartão e repondo-o no quadro, deixa a portaria, sendo acompanhada do olhar indiscreto do guarda-atendente.

O que previa, aconteceu. Reflete Maria e para não perder o ônibus que acaba de estacionar, correndo atravessa a avenida, em sentido da porta dianteira do coletivo, por onde entram outras funcionárias da fábrica.

- Com licença, senhora.

A mulher se afasta de lado, permitindo-lhe a passagem.

- Obrigada.

4

Telma desabafa:

- Maria sofri muito, me entreguei de corpo e alma ao Genildo... Branco, forte, bonitão, prosista... Me conquistou logo e, de repente, me vi no “corte” semanal da firma. E entendi: Genildo apenas me “usou”. Sim, ele que é um dos encarregados do Salão indica os que saem ou não no maldito “corte”... Cafajeste!

Silencia. Maria entende tudo. Conhece o Salão com seus encarregados de turma, seu Genildo que... Será que Telma... ainda não soube?

Telma retorna a falar:

- O ônibus está demorando demais. Já estou nervosa, mas...

Maria aguarda. Sabe que o assunto de antes retornará e, a ex-colega:

- Fiquei no “olho” da rua. Mas, bem diz a minha mãe: “O que se faz aqui na terra, depois se paga!”. E o Genildo irá pagar por seu mau-caráter.

Maria então fala, revela:

- Telma, pelo visto, você não soube mesmo o que aconteceu...

- O quê? O que eu não sei?

Sem fitar o rosto moreno, bonito, perplexo, Maria então revela tudo:

- Seu Genildo logo que você saiu, também foi “dispensado” da fábrica e dias depois sofreu um derrame.

- O quê?

- Foi, nega. Hoje ele tá numa cadeira de rodas, sem mexer com a banda esquerda do corpo e... Sem falar. O homem perdeu a voz.

Silencia.

O ônibus surge à esquina e se aproxima em velocidade.

As mãos das mulheres se erguem acenando e o coletivo estaciona.

Ligeiras, com outras mulheres e homens Maria e Telma adentram pela porta dianteira da condução.

- Calma pessoal, dá pra todo mundo!

A voz nervosa do motorista, no estresse diário.

As cadeiras são ocupadas e em pé, Maria e Telma, lado a lado, de rostos virados para as janelinhas do coletivo, seguem o que vai ficando para trás.

Carros. Motos. Bicicletas. Pedestres nas calçadas. Residências iluminadas e o morro com as casinhas desordenadas, de luzes acesas, numa cena de pobreza e poesia.

O mundo com seus caminhos, castigos... Reflete Maria e se volta, fitando o perfil moreno, bem talhado da ex-colega da fábrica e de angústias ante a vida moderna e implacável dos nossos dias.

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 20/03/2012
Código do texto: T3565538