Ódio

*Escrito na véspera do aniversário do autor, ou seja, dia 11 de março*

Coisa que me persegue desde a infância, e que sempre esteve comigo nos momentos mais sórdidos da vida.

Desde muito cedo o conheci, e tinha certo medo até ele começar a andar do meu lado. Minha infância foi tranqüila até certo ponto; tirando a convivência breve que tive com meu “pai” por assim dizer. Ele batia na minha mãe quando chegava do bar... E em meio a gritarias e tapas, cresci.

Aos nove anos de idade, eu surtei. Surtei e pensei comigo mesmo que aquilo deveria ter um fim. Na próxima briga – que seria a ultima deles– fui até um grupo de marginais que o expulsaram de casa. Tudo estava em paz a partir de agora.

Aquele ódio presente no meu pai me alimentava e me fazia crescer. E quando ele se foi, meu ódio foi canalizado – por assim dizer– à existência dele. Todo o lugar onde eu morava era cheio de cenas indescritíveis em cada esquina. Um corpo sendo tirado do rio, ou até mesmo ao ar livre; no meio da rua. Pessoas se matando, roubando coisas e consumindo toda sorte de drogas na minha porta. Isso foi o que eu vi quando era pequeno. Meus heróis eram os bandidos da época, o “vado” que era até então “dono” de uma favela; e esse era só a cabeça da lista. Ou o ás de espadas do baralho...

Me mudei de lá aos 11 anos de idade, fui para um lugar próximo, mas não tão violento assim. Lá eu conhecia pessoas e era um lugar até legal... Mas o que era presente em mim na minha antiga casa – ou meu antigo “lar” – me acompanhou também por lá. Eu era até então um moleque que pichava o portão dos outros, paredes e etc... Eu e meu grupinho aterrorizando a vizinhança, como uma espécie de “marginais do amanhã”. Isso também acompanhou a minha breve estadia no meu antigo endereço. Até que me mudei para onde estou agora. Minha família estava toda por aqui o que deveria ser bom... Deveria.

O lugar parecia e parece até hoje esquecido por Deus, uma terra de marlboro; eu que já tinha dado meu primeiro gole aos 12 anos, comecei a encher a cara dos 13 em diante.

Não conhecia ninguém por aqui, e para falar a verdade não faço muita questão de conhecer até hoje.

A maioria, se não todos os que eu conheço por essas bandas são remanescentes da escola; escola essa que ficava a uns quinze minutos da minha casa de ônibus. Eu achava quase todos legais e tenho amizade até hoje com alguns; com outros perdi o contato.

Até então eu tinha 14 anos, bebia com meu povo e comecei a escutar rock. Eu adorava aquela merda – e adoro até hoje. Creio que é uma das coisas que levo daqueles tempos como um souvenir pessoal; assim como os meus discos de MPB.

E o ódio continuava a me acompanhar, dessa vez em outro foco; desta vez nos funqueiros – que não passam de pessoas que escutam funk e andam como “astros” do hip hop americano à La Brasil. Toda vez que eu via um tipo desse – no ônibus, na rua – cerrava os punhos só aguardando um tipo de reação deles para lhes esbofetear. Achava aquilo o máximo embora não tenha surrado ninguém... Até porque quando eles me viam mudavam de calçada – e cá pra nós, até eu mudaria pensando bem... Um ser com uma camisa preta, uma corrente no pescoço vindo em sua direção com um punho fechado e a outra no bolso da jaqueta. Real e terrivelmente assustador...

Assim eu filtrava as minhas amizades. Quem ainda sim falasse comigo merecia certo crédito. Assim fiz as amizades que até hoje me acompanham. E foi com uma dessas mesmas que dei o primeiro trago em um cigarro.

Não que eu fosse obrigado a fumar, mas eu quis um e pedi a ela oras! No inicio nem tragar sabia e tossi pra cacete, mas com o tempo fui pegando o jeito. Era um cigarro quando entrava no colégio e outro quando saia, pratica e religiosamente ao sair do colégio. E tudo isso em 2006, precisamente em 2006.

Em 2007 as coisas ficaram diferentes, depois de tomar um porre e ir fazer a prova de um concurso publico, tive a sorte de passar. Achei que seria legal, um novo começo, um lugar diferente pra recomeçar as coisas. Mas eu já não era aquele garotinho assustado de quatro anos atrás. Eu ia ficar naquela merda de escola; ou pelo menos tentar. E desde o começo eu fui brincando de fazer merda. Matava aulas, e quando estava entediado pelas aulas que assistia, simplesmente enchia a cara. Os cigarros aumentaram a proporção também... Eu era apenas iniciante na época dos dois por dia. Na nova escola passei dos dois aos vinte – ou seja, um maço. E tudo isso aos 15 anos.

Fiz ótimos amigos por lá também... Falo com eles até hoje e saímos também. Ótimas pessoas. Mas o meu velho amigo de sempre estava ao meu lado. O ódio e a vontade de destruir as coisas.

E eu me perguntava: De onde surgia tudo isso?

Quero dizer, minha mãe foi ótima e sempre supriu a falta do meu pai; eu tinha uma família legal. E como não conseguia achar a resposta na minha mente, tentava achar no fundo do copo uma resposta satisfatória e quase sempre não encontrava. Entre porres memoráveis e fumaça foi a minha curta estadia no colégio novo. Até que um dia fui convidado “gentilmente” pela diretoria a me retirar. Quando fui ver minha vida estava de cabeça pra baixo... Repeti dois anos, tinha virado fumante e o álcool era quase – senão– todos os dias.

Nesse meio tempo que estudei lá, namorei com uma garota. Conheci numa rede social e conversamos por um tempo até que a gente se encontrou. Bem, eu tava entrando nos eixos. Tinha reduzido o álcool; e nunca fumava perto ou quando fosse encontrar com ela. Ah, devo dizer que era lindo... Eu despencava da baixada fluminense pra encontrar com ela na zona sul, pegava três conduções só pra ficar com ela por duas ou três horas. Antes dela se lembrar do horário e sair correndo para casa.

Minha família não andava lá essas coisas, descobriram um câncer na minha avó. E no mesmo mês da descoberta da doença que minha avó tinha, levei um pé na bunda dado pela garota. O ódio me apossou. Fiquei realmente puto com aquilo; e eu que tinha parado de fumar, assim que sai da estação do metrô após ela terminar comigo comprei um maço de cigarros.

Mudei os padrões e mudei de colégio (não necessariamente nessa ordem). O colégio cheio de patricinhas e funqueiros era o lugar perfeito para disseminar o caos, o meu caos. Agora eu estudava no centro da cidade, onde as coisas aconteciam. Um amigo meu foi estudar lá também e por uma estranha e terrível coincidência na mesma sala que eu. Juntos botávamos para fuder com tudo. Não precisava de motivo, à vontade em si já era o bastante.

Meu segundo ano do ensino médio se arrastou até o final. Conclui carregando duas dependências, meu amigo repetiu e foi estudar de noite. O terceiro ano foi diferente de tudo que eu já tinha visto ou vivido até então. Na época eu roqueiro e ateu como todo bom comunista; fumante e alcoólatra.

Tinha escolhido ser ateu por um simples motivo: Minha era da igreja e tinha um câncer. Porque diabos eu iria crer em um Deus que nem cura quem o ama e respeita?

Minha mãe odiava quando eu falava isso com ela, por isso que quando o assunto aqui em casa era religião, eu simplesmente não falava nada ou saia de perto.

Ainda no terceiro ano, em meio a toda aquela correria para vestibular; trabalho e essas coisas, acabei por conhecer uma garota que eu ia me apaixonar e ficar com ela pelos próximos seis meses. Ela era igual a mim. Odiava quase todos e era anti-social. O que era legal, porque eu não ia precisar fingir nada. A gente saia do colégio; fumava um cigarro e bebia de vez enquanto – eu todos os dias.

A gente combinava até no ódio, tínhamos isso igual. E então uma vez a gente brigou feio, ela não confiou em mim e tudo isso serviu pra gente terminar.

Comecei então a usar o ódio ao meu favor. Estudei com ódio e as minhas notas que eram razoáveis passaram a ser uma das melhores da turma. No mesmo ano me alistei no exército, pois já ia fazer 18 anos; e embora no colégio eu estivesse até indo bem, no vestibular eu não fui tão bem assim.

Fui reprovado com louvor e quando tudo deu merda, após chorar de ódio pensei: “Foda-se, vou pro lugar de gente fudida que nem eu. Vou pro quartel.” E assim foi feito.

Na chamada para o recrutamento, olhei pro céu e disse: “Você já me fudeu no vestibular, espero que não faça o mesmo com o quartel”.

Como foi visto eu não era um cara muito religioso... Mas lá dentro você tem que se agarrar em alguma coisa, ou em alguém. Escolhi a Deus; mas continuava odiando a tudo e a todos, do Tenente ao General. A quantidade de cigarros, remédios e álcool que eu passei a ingerir passaram de exorbitantes para extremamente ridículas. Foi quando no meio de tudo encontrei aquela que seria “a”, e que iria me mostrar que eu estava completamente errado.

Começamos a nos falar por acaso, embora ela já tenha estudado no mesmo colégio que eu. Eu a conhecia só de vista, mas nunca tinha dado um “oi” para ela.

É, Naquela época eu era o supra-sumo da educação...

Desde o começo fui franco com ela, e falei sobre todas as merdas que já havia feito e mesmo assim ela não desistiu. Começamos a namorar quando eu ainda estava no quartel, e ela era fascinante. Diferente de tudo que eu já havia visto – e ainda continua sendo.

Ela me mostrou que eu podia ser diferente, que eu podia fazer as coisas de outro jeito, coisa que ninguém jamais sequer se importou em fazer. Meu velho amigo de outrora me abandonara e eu passei a fazer as coisas certas. Logo eu, que tinha me esforçado bastante ao longo desses 19 anos para me tornar um completo imbecil, um babaca; estava tentando me ajeitar.

Deixei de beber, reduzi drasticamente o cigarro... Mas aí veio a bomba. Minha avó que já não andava tão bem veio a falecer. Ela estava no hospital internada fazia três semanas, por aí; e justo quando eu iria visitá-la, ela morreu.

O telefone tocou aqui em casa e eu acordei na mesma hora com aquele pensamento: “Deu merda”.

Alguém atendeu, contei até dez e minha mãe começou a gritar e chorar.

No mesmo dia, foi acertado os detalhes do enterro e toda aquela burocracia, e chegou o dia do enterro. Não fui ver o corpo. Nem sequer pela porta da capela passei... Fiquei no banco sentado e lembrando das coisas que ela fazia: Doces de banana, e as inúmeras danças que ela protagonizava quando escutava forró. Coisas que apenas ficam na lembrança de quem viveu tudo aquilo. Mas enfim, quando todos estavam concentrados na minha mãe e no velório e aquelas coisas fui caminhar pelo cemitério, me sentei num banco e ao pedir perdão à minha avó por não tê-la velado comecei a chorar. E quanto mais pedia perdão, mais chorava. As lágrimas pendiam de meus olhos de uma forma que eu não era capaz de contê-las... Logo eu que nunca gostava de explicitar meus sentimentos estava ali, sentado num cemitério, chorando por uma vida que partia e por outra que escorria entre meus dedos. Acho que aquelas lágrimas foram por uma vida inteira que eu tinha estragado até então.

E essa garota me deu forças. Mesmo com tudo quebrando debaixo do meu pé foi nela que me apoiei.

Certo tempo depois, num domingo frio e cinzento ela terminou comigo. E a justificativa não podia ser melhor: “O problema não é você, sou eu”. Já era a segunda vez que eu escutava aquilo. Mas pela primeira vez fez sentido... Recebi explicações que me fizeram crer nisso.

Passado um tempo, eu tentei inutilmente voltar a ser um Babaca, e isso inclui beber feito um gambá e fumar uma quantidade absurda de cigarros. Mas de nada adiantou. Os cigarros só me tiram a vida, já o álcool me deu uma ressaca moral jamais vista. Me senti um fraco e comecei a pensar na minha vida. Eu estava ficando como meu “digníssimo” pai...

Cheguei até a pensar em tomar uma cartela de comprimidos seguida de uns goles de pinga, mas refleti e achei que me mandar pro inferno seria triste. Pelo menos pra minha mãe e pra algumas pessoas que gostam de mim, que parando pra pensar não são poucas.

Durante muito tempo fui um completo idiota, um merda e enfim; me perdôo por isso. Eu sei que fiz coisas que afastam cada vez mais as pessoas de mim, e as vezes isso é involuntário, quero dizer, quando se passa metade da vida sendo detestado por meio mundo você acaba se acostumando a ser assim.

E como amanhã, dia 12 de março faço vinte anos, creio que é tempo de ajeitar as coisas e deixar o ódio que me acompanhou até hoje esquecido e tentar fazer as coisas certas, mas jamais esquecendo de quem sou...

Sei que para alguns é tarde, mas peço que me perdoem por tudo de mal que lhes fiz, e por tudo de ruim que causei.

Pois agora sei do que sou capaz, e pela primeira vez em muito tempo, cheguei à conclusão de que o ódio não leva a lugar algum. Só leva a um lugar onde você se sente preso; asfixiado e afundado em um buraco que você próprio cavou.

Marcos Tinguah Vinicius
Enviado por Marcos Tinguah Vinicius em 18/03/2012
Código do texto: T3562424
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