_Amigos de infância

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Não moro mais na cidade onde nasci. O trabalho e meu temperamento pouco intempestivo – na realidade, meu excesso de sinceridade e mania quase irresistível de falar demais – culminaram com minha transferência para o interior.

Foi um processo doloroso, dor íntima, espiritual. A distância da família, do meu pai doente, da minha mãe... Às vezes me surpreendia, sozinho, durante mais uma das incontáveis noites em claro, relembrando os momentos junto ao meu velho – todos os pais são especiais; as mães também. Entretanto, serei egoísta e não falarei aqui do meu primeiro e mais importante referencial de vida: o meu pai.

A nova-vida-nova me colocou lado a lado com periódicas idas e vindas entre a capital e o interior. As viagens eram fabulosas! Quando me deslocava durante o período noturno, tentava, inutilmente, adormecer. Quase sempre chegava ao destino sentindo-me um trapo humano, exaustivamente degenerado pela travessia; não raros eram os momentos em que, sobressaltado, quase me erguia do banco numa e noutra curva mais acentuada; se optava por viajar tendo o Astro-rei como expectador, o causticante sol que não nos atingia devido à proteção dos condicionadores de ar dos ônibus, brindava-nos com paisagens de encanto raro, vistas quando em contato com a natureza.

Gostava de coletivos por duas razões. Uma delas era o preço – eu viajava gratuitamente. Era só colocar o uniforme e, todo sério, embarcar sob os olhares curiosos dos civis que ainda hoje acreditam que os militares são diferentes, seres metamorfoseados. Pior que somos mesmo! A segunda razão... Ah, essa é melhor, mas é prudente a não revelar.

Mais uma viagem. Saímos vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos. Chegamos por volta das seis horas da matina. Mais uma vez, eis um homem destruído. Liguei para a casa dos meus pais. Meu irmão atendeu, mas não quis ir me buscar. Não me restou alternativa a não ser andar sem ônus para o erário. E lá me fui num dos coletivos da capital rumo à casa da mamãe.

“Nasci num bairro suburbano e meus pais foram um dos fundadores do vilarejo. A vila onde nasci se formou, portanto, entre amigos quase irmãos”. – estava preso a recordações que passavam dentro de mim como as paisagens das ruas da cidade.

Cheguei. Toquei a campainha. Minha mãe demorava. Durante a espera, passa um amigo da época de escola. Estava barbado e aparentava bem mais que a minha idade, apesar de termos nascido no mesmo ano. Fazia tempo que não nos víamos. Fui tomado pela nostalgia. Senti necessidade irresistível de não me calar. Ele também. E não calamos. Relembramos as travessuras – criança sadia não faz outra coisa! As brigas entre bairros rivais vizinhos; as primeiras namoradas... Mas o tempo passou rápido demais e nos pusemos a falar do presente.

Perguntei por onde andava o Zé Caguinha. Ele respondeu, rispidamente, como se eu tivesse alguma culpa:

– Está preso!

– E seu irmão, o Passarinho?

– Ficou louco depois que a esposa foi embora com os filhos.

– E os outros?

– Neném faz bico como servente de pedreiro; a Fê trabalha em casa de família”...

E se seguiu um rosário de histórias tristes e fins trágicos, como o do Quermezé, assassinado durante troca de tiros com a Polícia.

– E você, rapaz? Perguntei finalmente.

– Eu, amigo, vou levando a vida como Deus quer...

– Oi, mãe! Estava dormindo?

– Sim, filho! Nem ouvi a campainha tocar. Tudo bem, Bil?

– Tudo. Como a senhora está?

– Na paz, graças a Deus.

Trocamos forte aperto de mão e nos despedimos.

Entrei. Não tive forças nem coragem de tocar no assunto com minha mãe. Tomei o café em seco e, durante o banho, chorei, na minha solidão.

Lamentei as agruras da vida. A existência, apesar de breve, ainda abre portas para caminhos mal traçados; nesses descaminhos, estavam pessoas próximas, distanciadas das alegrias, levadas pelas dificuldades. Seriam escolhas ou imposições?

A manhã estava fria. A imagem do amigo me perseguia. Quis entristecer-me novamente, mas os raios de sol, que entravam pela janela do quarto, alertaram-me: é preciso ser forte, qualquer que seja a caminhada.

Juazeiro do Norte-CE, 15 de abril de 2008.

11h10min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 18/03/2012
Reeditado em 18/03/2012
Código do texto: T3560934
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