"Velhouco" do 301

Durante a madrugada, a gorducha larga o pacote de Doritos em cima da mesa e vai em direção à porta. O velho louco do apartamento 301, com um sorriso desdentado e um bafo desagradável de amendoim, pergunta para a senhora:

- O mar tá calmo hoje, madame... Larguei um pouco a roda do leme, será que a senhorita aceitaria dar uma volta no meu convés?

Ploft!

- Quem era? Pergunta o marido.

- O velhouco, mais uma vez.

- Temo que dá um jeito nisso, mulher. Esse maluco vai acabar afundando esse prédio, digo, esse navio. Haha...

Nos dias de muita chuva, o velhouco se atirava de um lado para o outro, segurando nos móveis e gritando termos da marinha na janela. Nos dia de sol, estendia a vara de pescar pela janela, arranhando com o anzol as janelas de baixo, e de vez em quando derrubando um vaso de flor ou fisgando o boné de algum pedestre da rua. Aquele antigo prédio, situado no centro, realmente possuía um morador inusitado.

Certo dia, dois jovens, vizinhos do velhouco, chamaram-no dizendo que haveria um buraco no casco do navio, aonde estaria entrando água. Levaram-no a um canto do corredor aonde um pequeno vazamento de água escorria pela parede. O velhouco ficou lá falando sozinho, elaborando planos para resolver o problema. Enquanto isso, os jovens entraram no apartamento do velho – que por sinal deixara a porta aberta, como de costume – e, num ato de zoação, ligaram a torneira do banheiro e fecharam a porta, tapando a fresta de baixo com uma toalha.

O coitado, depois de retornar ao apartamento, abriu a porta do banheiro e foi levado por uma mini onda que o jogou para trás. Imediatamente - para espanto dos jovens que grudaram o ouvido na porta do velho para ouvir o que se sucederia - começou a gritar:

- Abandonar a embarcação! Salve-se quem puder!

Agora com um pouco de remorso, e temendo que o velho se atirasse pela janela, os jovens invadiram o apartamento, segurando-o e tentando controlar a situação.

Após horas de fofocas, tumulto, xingamentos e muita confusão, a cena parecia estar resolvida. A polícia foi embora, e os moradores curiosos já retiravam-se para seus aposentos. Mas uma única pessoa permaneceu no apartamento do velhouco: a psicóloga do outro prédio, que se voluntariou para tentar ajudar a desvendar a insanidade do figuraça. Após horas de conversa, se aprontou para ir embora, pensando ter a situação sobre controle. Ao sair do prédio, fora questionada pelos moradores que ali se encontravam sobre a conversa com o velhinho.

- Ele não é tão louco assim. Digo... Ele precisa de uma boa conversa de vez em quando, nada que uma boa companhia não resolva. Botou as mágoas pra fora, contou sobre sua falecida esposa, sobre o câncer nos testículos do seu cachorro, enfim.

Bastou atravessar a rua, com um sorriso confiante estampado no rosto, para se ouvir um grande estrondo, seguido de pedaços de vidro voando pela calçada. Um alarme disparou. A moça virou a cabeça e se deparou com um carro totalmente amassado, aonde uma enorme âncora repousava sobre seu capô.

E o velhouco logo acima, na janela, com o queixo apoiado sobre o punho, e o típico sorriso desdentado e simpático, gritou alegremente:

- NAVIO ANCORAAAAAAAADOOO!