Nostalgia

Eu já estava cansado de toda essa superficialidade, em parte causada pela nova onda tecnológica que trouxe novos artifícios para manter nossas mentes controladas, deixando evidente que o desenvolvimento da sociedade deveria se manter sempre ascendente e minando qualquer desejo de voltar aos bons tempos. Diante de todo esse aparato, me via na obrigação de esquecer um passado tão bem vivenciado, pensando sempre no futuro e em novas possibilidades. Cheguei ao ponto de não mais desejar ficar preso num mundo de ilusões, de artimanhas para me desviar das coisas boas da vida.

Foi então que resolvi voltar ao passado, mesmo que seja apenas na imaginação. Queria voltar para uma época mais simples, onde toda essa futilidade era inimaginável, onde a criatividade ainda era algo digno de apreciação. Desejava voltar para o nostálgico ano de 86. Não sei bem ao certo por que escolhi essa época. Talvez porque foi nesse ano que as maiorias das músicas que curto e dos filmes que tanto aprecio foram produzidos. Deitei-me na minha confortável cama e deixei a escuridão do meu quarto frio me levar para esse mundo esquecido por muitos.

Quando me dei conta, estava caminhando pela terra fofa da minha cidade natal. Justamente na época onde não havia asfalto e a rede elétrica era precária, com postes de madeira improvisados levando energia para as poucas casas que jaziam no bairro. Olhei tudo aquilo com aperto no coração, sentindo a dor gostosa da nostalgia impregnando o meu corpo. Já me ambientando no local, resolvi visitar o barzinho do “seu Pequê”, lugar onde eu comprava salgadinhos e refrigerantes. Para isso teria que passar pelo campinho de futebol onde meu irmão mais velho jogava. Não tinha grama nessa época, pelo menos para nós. O campinho era cheio de pequenas pedras e as traves eram feitas de madeira. Para minha sorte vi meu irmão e meus colegas jogando, com uma bola de “capotão” imunda; uma cena que há muito não presenciava.

No trajeto até o barzinho observei com saudades as casas feitas de madeira, mal construídas, mas que se mantinham tenras graças à humildade de seus donos. As cercas eram feitas de troncos agrupados e arames farpados (muros de tijolos eram raros onde eu morava). Eu olhava tudo aquilo com um brilho inexplicável nos olhos, desejoso por permanecer ali por eras.

Quando chegue ao barzinho de madeira, vi o seu “Pequê” sentando na sua velha cadeira de balanço. Ele se levantou, e com o andar arrastado, entrou no pequeno cômodo onde mantinha uma velha geladeira vermelha, do tipo que não se fabrica mais. Como eu estava com sede, pedi para que arranjasse um refrigerante de garrafa. Como os freezers ainda eram muito caros na época, o seu “Pequê” mantinha as bebidas na própria geladeira. Ele a abriu e vi todas as garrafas dispostas em fileiras, deitadas. Puxou uma e a abriu, deixando a espuma cair sobre o balcão gasto. Enquanto o refrigerante derramado secava, eu via os pacotes de salgadinhos de uma marca que não existe mais. O seu “Pequê”, que deixava o braço praticamente nu por conta das camisas de mangas curtas da época, esticou-o para me oferecer o refrigerante. Tomei a garrafa inteira, sem acreditar o quão gostoso era essa bebida antigamente.

Tendo minha sede saciada, sai do barzinho e fui caminhar pelo bairro. Via os fuscas estacionados em frente às casas e radiolas ligadas no quintal tocando discos esquecidos. As músicas me agradavam de tal forma que conseguiria ficar um dia inteiro escutando-as.

Com os pés sujos de barro, resolvi voltar para casa. Observei ao longe meu pai armando a rede nas mangueiras do quintal, com uma garrafa de pinga no chão e um prato cheio de mandioca frita encima do tamborim. Mais à frente, admirava as crianças soltando pipa como se não houvesse amanhã, rindo de suas inocências. Elas tinham os pés descalços e usavam aquelas bermudas minúsculas que tinham um nome particular, mas que não me recordo no momento. O que me deixava ainda mais admirado é que não as via brigar, apenas brincavam incessantemente.

Era tudo muito simples, um mundo sem preocupações e sem maiores aspirações. Vizinhos conversando na frente de casa, colocando a fofoca em dia. O ambiente não era tão abafado e poluído e o ar parecia mais puro. Eu respirava esse ar assim como respirava a nostalgia que todas aquelas cenas me causavam. Não queria mais acordar. Queria ficar ali, vivenciando ciclicamente aquela época até que meu corpo virasse poeira e se misturasse à terra que anos depois fora coberta com asfalto.

Acordei de meu sonho, de meu exercício incomum de imaginação. Uma lágrima caiu de meu rosto, não porque deixei de aproveitar mais daquela época mágica, mas sim porque sei que por mais que eu queira, jamais voltaremos a viver como antes.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 14/03/2012
Reeditado em 14/03/2012
Código do texto: T3554790
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