Ponto de Inflexão

Morava naquele bairro desde que concluíra a universidade. Trocara de emprego duas vezes, mas em nenhuma ocasião precisou procurar um novo endereço. Bairro boêmio, com bares que aos poucos ocupavam os prédios do antigos casarões. Também havia sebos, uma de suas paixões, e padarias. Uma, em especial, era sua favorita.

Todo sábado (apesar de ser sábado) ele acordava cedo e ia para a rua. Em geral, encontrava pessoas voltando para a casa. Pessoas que saíram de algum dos bares da região, os quais atraíam seus fregueses com menus cada vez mais exóticos.

Caminhava até a banca. Não até a mais próxima, que era pequena e pouco oferecia além de alguns jornais da cidade e revistas com receitas, colocadas estrategicamente ao lados das revistas com dietas. Preferia andar mais, aproveitar a manhã, desviar de pequenos grupos de adolescentes (representantes das diferentes tribos urbanas) para os quais a noite só acabara há pouco. Só então chegava à sua banca favorita. Comprava um jornal ou uma revista semanal. Às vezes uma de divulgação científica, às vezes uma de variedades, às vezes uma de fotografia (sua outra paixão).

Por fim, caminhava mais um quarteirão, até a sua padaria predileta.

Não era bom fisionomista. Poderia rever, diariamente, as moças que o atendiam, e dificilmente lembraria dos rostos. Bastava que ela deixassem de vestir o uniforme com o característico boné branco, e já poderiam passar por ele sem serem reconhecidas. Meses antes, inclusive, uma delas o cumprimentara no ponto de ônibus. Ele, educadamente, retribuiu o cumprimento sem, contudo, saber quem era aquela moça. Lembrou-se, por acaso, dias depois.

Aliás, raramente era atendido pela mesma moça. Às vezes sabia que a atendente o reconhecia, pois a mesma já se antecipava ao pedido (disponibilizando-lhe, por exemplo, o açucareiro sem perguntar se ele preferia adoçante). Às vezes, não era tão conhecida assim, perguntando-lhe a preferência. Também havia as novatas, que às vezes cometiam pequenos enganos, sempre perdoáveis. No entanto, já fazia algum tempo que a padaria (pelo menos aparentemente) não contratava ninguém.

Ele gostava daquele ambiente. Era um lugar calmo, aos sábados. Podia começar a ler o jornal ou a revista (seja ela qual fosse), ou até mesmo um livro (daquelas edições de bolso, baratinhas, também vendidos na banca). Sentava-se e começava a ler, esperando ser atendido. Logo chegava alguma das garçonetes, sempre com um habitual cumprimento. Ao final, uma frase característica:

- Mais alguma coisa, moço?

Quase todos os sábados ele mantinha essa rotina, embora não a encarasse como uma rotina. Claro que às vezes havia variações (podia dormir até tarde, por exemplo, ou saída mais cedo para viajar, ou ainda decidia ficar em casa vendo desenho animado na televisão), mas em geral mantinha a rotina. Caminhava até a à banca e até a padaria. Fazia o pedido e, em geral, respondia "não" após o "mais alguma, moço?".

Naquele dia não foi diferente:

- Bom dia, quer ver o cardápio?

- Não, obrigado, quero apenas um pão na chapa e um café de coador.

- Ok! Mais alguma coisa, senhor?

"Senhor"... Aquela palavra produziu, curiosamente, um som estranho. Quem era essa moça, que o atendeu? Era bonita, disso ele não tinha dúvidas. Rosto fino, com algumas marcas de acne, porém discretas, tom de pele hispânico, cabelos pretos (com alguns fios clareados) olhos castanhos e nariz pequeno. Era bastante jovem, mas não tinha jeito de ser novata. Aliás, imaginou tê-la visto em outras ocasiões, servindo outros clientes. Ele permaneceu olhando para ela por alguns instantes. Não conseguiu precisar quanto tempo decorreu, soube apenas que foi um tempo suficiente para que a moça indagasse, novamente:

- Senhor? Está tudo bem?

- Ah, sim, sim, está! - respondeu, gaguejando como uma criança que acabara de ser surpreendida em alguma travessura. - Não, não, é só isso mesmo, obrigado! - concluiu, respondendo à pergunta anterior.

"Deseja mais alguma coisa, senhor?" Como assim, "senhor"? Ela era jovem, sem dúvidas, mas não era tão jovem assim. Poderia encontrá-la aleatoriamente em alguma festa, ficar com ela, ou talvez ele poderia paquerá-la ali mesmo, sair com ela após o expediente... e ninguém acharia estranho. A diferença entre suas idades não seria algo que chamaria a atenção. Para ela, no entanto, ele merecia ser chamado de "senhor". Lembrou-se, então, da gerente de recursos humanos, da segunda empresa na qual ele trabalhara. Logo na primeira entrevista à qual ele fora submetido, ela o chamara de senhor. Ele, porém, logo pediu-lhe:

- Por favor, não me chame de senhor, um ano atrás eu ainda chorava nota com professores - e riu, assim como a gerente.

Talvez fosse isso, a jovem garçonete apenas tinha o hábito de chamar todos de "senhor", seja quem fosse. Começo a acompanhá-la com os olhos. Diferente de outras garçonetes, essa calçava sapatos de salto alto, mas se deslocava com fluidez, mantendo as costas eretas. Seria uma dançarina, nas horas vagas? Ela caminhou com elegância até um mesa, próxima a ele, onde um rapaz lia o cardápio.

- Bom dia - disse a moça.

- Oi, bom dia - respondeu o rapaz - eu queria um misto quente, e um cappuccino.

- Mais alguma coisa, moço?

"Moço". Um rapaz de óculos e de barba por fazer era um "moço", ao contrário dele, um "senhor". Quantos anos a menos que ele teria aquele rapaz? Dois, no máximo. Com certeza não era mais um universitário (mas como concluíra isso?). Aquele rapaz, com cara de nerd, aparentava ser mais jovem que ele? Talvez fosse o modelo do óculos, ou o cabelo desarrumado...

O café e o pão na chapa foram servidos pela mesma jovem garçonete. O café, no entanto, não parecia exalar o mesmo cheiro de que ele tanto gostava. Do pão, ele pouco sentiu o gosto. Viu o "moço" rir para a garçonete. Ele realmente parecia mais jovem.

Parou para pensar: semana passada, repetira a mesma rotina, e tomara café da manhã na mesma padaria. Quem o atendera? Será que fora a garçonete de mais idade, ou aquela de cabelos vermelho? Ela o chamou de "moço"? Será que ele envelhecera aos olhos daquelas pessoas? Em que momento da última semana deixara de ser um moço?

Sentiu vontade de acenar para a garçonete de cabelos vermelhos e fazer mais um pedido. Talvez ela não o chamasse de senhor. Seria gula, no entanto: nem sede ele sentia, a ponto de pedir um suco.

Resolveu levantar-se.

Próximo ao balcão havia um porta que conduzia até um lavabo. Apenas uma pia, sabonete líquido e toalhas de papel, além de um espelho. Mirou-se nesse espelho. Havia poucas rugas em seu rosto, pequenas demais para serem chamadas de rugas. Marcas de expressão, seria a definição correta. Seu cabelo era curto, mas não tinha entradas nem fios brancos. Encostou, sem perceber, a barriga na pia gelada. Olhou para baixo e acariciou o abdômen. Havia ganho peso nos últimos anos, mas procurava manter a forma com caminhadas e corridas. Voltou a olhar o reflexo de seu rosto: tinha olheiras, apesar de ter dormido bem nas últimas noites. Era uma característica genética, sua mãe é assim.

- Com licença, meu senhor.

A voz atrás dele era de uma adolescente. Loirinha, óculos vermelhos, piercing no nariz. Devia ter 16, 17 anos, no máximo. Estaria indo para o cursinho? Ele não pensou a respeito, pegou duas toalhas de papel (embora estivesse com as mãos secas) e se afastou da "criança".

E se, no lugar dele, quem estivesse diante da pia fosse aquele nerd fã de RPG. Aquela menina de 17 anos, vestibulanda, chamá-lo-ia de "senhor"? Ou seria um simples e direto "moço, dá licença"?

Decidiu parar de pensar a respeito e ir embora. Com o jornal embaixo do braço, caminhou até o outro lado da padaria, onde eram vendidos os pães. Pediu dois, para comer mais tarde. A moça que o atendeu apenas perguntou:

- Algo mais?

Apenas "algo mais"? Poderia ao menor ter completado a frase? Por que não complementar a pergunta? "Moço", "senhor", "meu", "véio", qualquer coisa! Podia ser menos impessoal, vocativos foram feitos para isso, ora essa!

Ele apenas respondeu que não. Um toque no celular anunciou a chegada de um SMS.

- Feliz aniversário, bobinho! Bjos - Fora escrito pela sua melhor amiga, que morava em outro estado.

"Bobinho"... Releu a mensagem. Sentiu um estranho desejo de chorar.

Ângelo Gabriel
Enviado por Ângelo Gabriel em 14/03/2012
Código do texto: T3554733
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