_Inestimáveis amigos
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Armando, inestimável amigo, surpreendeu-nos, a mim e a meu pai, relatando um fato ocorrido recentemente. Estávamos em meados de 1989.
– Seu Mundô! – iniciou. – Levei uma coça[1] de três covardes! Covardes mesmo – três contra um não é conta de homem, não! E ainda me atocaiaram[2]. Apareceram do nada e já chegaram batendo! Depois do terceiro tombo, eu já estava ficando “puto da vida!”.
Meu pai, não se contendo em gargalhadas, comentou:
– Rapaz, que “puto da vida” que nada! Com três homens batendo em mim, a única preocupação que me passaria pela cabeça era a de continuar vivo... – Meu pai não se continha, sorria copiosamente.
– É mesmo, né! – Respondeu meu amigo, tomando pé da situação e rindo um sorriso sem razão.
Armando era figura de característicos raros, física e psicologicamente: baixo – não mais que metro e meio –, corcunda, dentuço – daqueles que falam babando, sempre; vivia a vida em slow motion[3]. Caminhava vagarosamente. Possuía trejeitos e meneios típicos de jovens que tentam nos intimidar quando passam. As pegadas eram largas, as calças jeans estavam sempre derreadas, quase com os fundilhos à mostra. Ele fitava os passantes ameaçadoramente. Na realidade, era criança crescida. Crescera no mundo das drogas. Desde os 11 anos, incentivado por um “amigo”, trocou a merenda escolar por derivados do ópio.
Armando trabalhava como flanelinha num dos pontos da cidade. À noite, após o trabalho, ele e o irmão dormiam ao relento, único lugar que herdaram depois que o pai, poucos meses antes de morrer, vendeu a casa onde moravam.
Outro inesquecível amigo, de infância mais amena, criado com a avó – quem não conhece as particularidades de garotos criados com avó? –, confidenciou-me significativo acontecimento. As declarações dele me fizeram lembrar as muitas vezes que apanhei na infância por causa do meu irmão mais velho. Éramos quatro irmãos. Sou o terceiro da pareia. O segundo, levado da breca, tinha o apelido de “Camburão”. Fazia jus à alcunha e vivia aprontando repentinas travessuras.
Contou-me o Cilhão – apelido do meu amigo que me escuso revelar o nome – que certa feita, em companhia da mãe, ela lhe fizera um pedido:
– Meu filho, vai buscar água pra mamãe, você vai?
– Vou não! Deixe de ser preguiçosa!
Consequência da resposta: peia, muita peia!
Depois dos “conselhos” maternos que à época não davam cadeia nem causavam nas crianças nenhum stress nem depressão, a mãe, esperançosa, repete o pedido:
– Meu filho, vai buscar água pra mamãe, você vai?
– Eu vou, mas a senhora continua sendo preguiçosa!
Resultado da nova resposta: mais peia, muita peia!
Hoje, o Cilhão é homem bem resolvido, sem traumas, nunca foi a um psicólogo (apesar de ter sido criado com a avó) e exerce atividades profissionais com desenvoltura. Casou. Tem uma filhinha...
É. As amizades, temperadas com as pitadas de imprevistos que a vida nos faz experimentar, podem ter como resultado ou a incerteza do mínimo para sobreviver, ou a segurança de uma vida confortável. Isso depende, claro, da criação... Mas e o que as avós têm a ver com isso?
Juazeiro do Norte-CE, 5 de agosto de 2008.
10h13min
[1] Sova, surra.
[2] Atocaiar: esconder-se para atacar de surpresa.
[3] Câmera lenta