CONTO – Nobre, uma lição de vida – Parte V
Fazendo uma digressão: Pelo visto, claro que o Nobre tinha razão quando falou: “Quem iria ler o meu livro”? Isso a medir pelas leituras até agora registradas nestas verdades aqui escritas. Ainda não falei nada pra ele, a fim de não lhe causar decepção, até por que a culpa pode ser minha ao relatar o que tão nobre cidadão me conta.
CONTO – Nobre, uma lição de vida – Parte V – 01.03.2012
... Interessante, continua, falei: -- Desloquei-me a Limoeiro, cidade do agreste do Estado, designada para realização do evento, na véspera, à tardinha, somente com o dinheiro das passagens de ida e retorno ao Recife no dia seguinte, eis que o meu velho pai não dispunha de mais nada para disponibilizar. Aliás, bom que se diga, ele resolveu ir trabalhar durante uma semana a pés, a fim de me arranjar o dinheiro da condução, coisa que não era novidade, eis que já o fazia para possibilitar meu lanche na época dos estudos. Em lá chegando o movimento da cidade já estava um reboliço. Eram tantos os candidatos que foi uma verdadeira festa para os interioranos...
...As mocinhas usavam suas melhores roupas para impressionar àqueles que viriam a ser os novos funcionários do banco. Os hotéis, que eram poucos, completamente lotados. Também de nada adiantaria se vaga houvesse. Como pagar? Lembro-me de que fiquei estudando, fazendo uma revisão em matemática, numa sorveteria que ficava na Praça da Bandeira, juntamente com um rapaz que conhecera momentos antes, também pobre, mas que tinha onde dormir. Na parte superior do prédio, que pertencera ao grande empresário Octaviano Heráclio Duarte (Que Deus o tenha), funcionava o melhor hotel; era agropecuarista, criador de gado de raça e também industrial no ramo de beneficiamento de algodão.
-- Prossiga, pedi. -- Ficamos na sorveteria até tarde, mais de meia noite, acho. Foi então que a proprietária nos pediu licença porque iria fechar o estabelecimento, não havia mais fregueses, estava cansada. Notando que eu não tinha pra onde ir ela arriscou a me convidar para dormir no terraço de sua casa que também ficava na mesma praça. Era o que podia fazer, de vez que seu marido estava para chegar do sítio onde fora dar as ordens aos administradores. Foi um achado! Respondi afirmativamente, fiquei contente. Sempre me considerei um protegido de Deus, embora não entenda o porquê de tanto amor que o Grande Arquiteto do Universo nutria por mim. Talvez por ser um pobre coitado. Era uma caridade o que eu estava recebendo, e “fora da caridade não há salvação”, diz uma máxima religiosa.
E prosseguindo... Lá pelas duas da manhã eis que chega o dono da casa e tal foi a sua surpresa quando me viu sentado numa cadeira de balanço, praticamente sem dormir, até porque estava com uma gripe forte, com muita secreção, praticamente ao relento, e ficara apreensivo com aquela situação. O que pensaria aquele cidadão, falei comigo mesmo me interrogando? Será que entenderia o problema e concordaria com a solução! Para minha agradável surpresa ele disse: “Nada de ficar no terraço, vamos entrar e dormir numa cama, a casa é grande e temos o prazer de receber pessoas de bem. Se minha mulher resolveu está resolvido, e bateu o martelo”.
-- O dia ‘D’ amanhecera lindo por sinal, céu aberto. Consegui uma toalha, apenas lavei o rosto. Nada havia levado, nem mesmo roupas íntimas, a pobreza era total. Fomos tomar café. A mesa era enorme, própria de gente abastada do interior, sortida como nunca eu houvera visto em toda a minha vida. A variedade de opções era muito grande. Tinha de tudo, um verdadeiro banquete logo pela manhã. Passei bem, que café farto! Terminada a refeição, agradeci. Convidaram-me pra almoçar, não prometi, mas também não recusei. Agora era caminhar cerca de três quilômetros até o Colégio do Padre Nicolau para enfrentar os testes: Português e matemática pela manhã, datilografia depois do almoço, na sede da agência, mais três quilômetros de volta.
-- Estou anotando, dissera eu, continua, vai. -- Gostei das duas provas, mas a gripe me agoniava, a fome também. Então resolvi desistir da de datilografia, no que fui interceptado por um bancário, Sr. Lúcio, um homem de dois metros de altura, que chefiava um dos setores do banco, que mais tarde chegaria a ser padrinho de minha filha Sandra. “Nada disso, se você fez boas provas não deve desistir da mais fácil, não pode perder a oportunidade de ser funcionário do Banco do Brasil”, falara com aquele orgulho, muito natural, porque muito significava trabalhar na maior empresa brasileira, numa das mais sérias.
Retornando: Resolvi enfrentar a situação adversa, decidi ficar para a última turma. Entravam de vinte em vinte candidatos. Era rápido. Novecentos toques em seis minutos, numa máquina “Underwood” bem antiga. Comigo entraram apenas quinze, outros desistiram, foram embora. Eu era ‘dedógrafo’ (usava só dois dedos) nunca estudei a matéria, conhecia uma máquina de escrever por conta de um período que passara num escritório de um despachante aduaneiro. E batendo de letra em letra consegui chegar quase ao final do texto. Faltaram duas palavras. Enquanto isso só se ouvia o tilintar das máquinas dada à rapidez dos demais concorrentes. E eu comigo mesmo: se essa gente bate tão ligeiro como é que vou conseguir uma vaga? Só por milagre. Não me lembrava de que quando se chegava perto do final da margem direita o instrumento dava esse aviso. Mas a turma continuava sem rolar a manivela para a linha seguinte. Na realidade não vislumbrei nenhum deles na hora da posse.
Ansilgus