Apesar de Tudo... Eram Amigos!
Há tempos, com seus olhinhos miúdos ele observava o padeiro. Ele ficava lá, no outro lado da rua, por detrás de um pé de castanhola. Todo dia era a mesma coisa... Já fazia parte da paisagem da rua. Depois do “barato”, suas pupilas dilatadas fixavam com fissura a assadeira de frango. O padeiro sempre por perto. Vigilante.
Não tinha jeito. Era imperativo ele arranjar uma maneira de distrair o padeiro e surrupiar uma daquelas galinhas suculentas, douradinhas... Cheirosas de dar voltas nas tripas vazias de qualquer recheio que não fossem as migalhas do latão de lixo. E o Baleia? O vira-lata esquálido que ficava disputando as sobras com ele? De repente... Assim... De uma hora para outra, resolvera paquerar, ele também, as galinhas enfileiradas na assadeira elétrica. Bem que o pessoal falava que aquela assadeira merecia a alcunha de “televisão de cachorro”. E como aquele vira-lata era abusado. O desgraçado era só pele e osso, olhos esbugalhados... Vivia tropicando nas pernas... Pura enganação. Na hora de disputar as sobras no lixo? Nem parecia aquele morto vivo... Ligeiro que nem corisco não dava chance pra ninguém. E os dentes do sacana? Afiadíssimos! Realmente, era um adversário matreiro e muito, mas muito difícil de vencer. O desgraçado do Baleia, a despeito de sua aparência ignóbil, impunha respeito.
E agora o Baleia dera para ficar rondando a assadeira, de longe, se fingindo de morto... O bandido deitava na calçada, meio afastado, cabeça apoiada nas patas dianteiras, quietinho... Não mexia um músculo sequer... Só o branco dos olhos semicerrados se movimentando... De um lado para outro... Um olho nele, outro no padeiro e os dois na assadeira. Sonso que ele só, o danado do Baleia.
Ele achou melhor esquecer-se do Baleia e se concentrar em seus próprios problemas... Na fome que abrasava a sua barriga. Na presença constante e inoportuna do padeiro e na tremedeira que naquele momento, específico, atacava suas mãos e os seus joelhos. O pior mesmo era quando ficava careta de tudo... Quando não conseguia um gole sequer de aguardente... O “delirium tremens” o acometia de forma violenta... As baratas, as asquerosas baratas insistiam em subir pelas suas pernas e se aninharem nos seus genitais... Às vezes ele sacava toda a roupa e ficava pelado... Peladinho da silva... E aquelas asas duras? Batendo uma na outra? E o cri-cri-cri delas? E o cheiro nauseante? Mas o pior dos pesadelos eram os ratos... Eles subiam pelas pernas, roíam os bolsos e aranhando os braços com as garras compridas, continuavam a subida até os seus ombros e dali, ficavam em pé sobre as patas traseiras e guinchavam nos seus ouvidos... Quando acontecia isso, muitas vezes ele saia correndo pelas ruas, gritando e se debatendo. Já fora levado para o hospital por diversas vezes... Ficava um tempo por lá, tomava uns remédios, comia bem por uns dias e depois eles o devolviam para as ruas.
Naquele dia ele estava com sorte, não tinha bebido nada desde a madrugada, já era perto de meio-dia e, por enquanto, somente a tremedeira o acometia... Ainda não estava sentindo o odor nauseoso das baratas... Primeiro sintoma antes do ataque dos ratos quando a abstinência era prolongada... Fazendo as contas, ele já estava há quase oito horas sem dar uma bicada numa cachacinha... Era por isso que a garganta estava arranhando de tão seca.
“Olha lá... Presta atenção no serviço, rapaz... O padeiro está retirando os frangos da assadeira... Está empilhando todos eles numa bandeja... O quê? Não acredito! Ele deixou a bandeja sozinha em cima da mesa na calçada? Aha! Está atendendo ao telefone fixo... Parece agitado... O quê? Ficou de costas? Esta é uma oportunidade de ouro... Esta eu não posso perder... De jeito nenhum... Se eu andar ligeiro... Disfarçando... Com cara de quem não quer querendo e agir rápido, bem rápido... Dá para pegar um frango... Nem que eu queime a minha mão”.
Nesse ínterim, o vira-lata Baleia direcionou os dois olhos para ele, dando a impressão de ter-se esquecido da bandeja. Ledo engano, de repente os olhares dos dois se cruzaram e um fio tênue de tensão os ligou.
A adrenalina deixou os corpos dos dois retesados. Atenções divididas. Os olhos dos adversários pareciam duas lançadeiras. Da assadeira para o adversário. Do adversário para a assadeira e de relance para o padeiro, coisa rápida, só para manter o estado de alerta.
Ele escorou as costas no tronco do pé de castanhola, passou as mãos para trás e as apoiou no tronco. Retesou os músculos esquálidos e se preparou para a corrida ligeira, cujo prêmio seria a primeira refeição decente das últimas semanas. Seria relativamente fácil. O padeiro descuidado estava de costa. O trânsito de carros estava lento. O baleia estava distante. Era pegar o frango, passar sebo nas canelas e disparar em direção ao terreno baldio. Ia dar certo... Tinha que dar certo.
O maior problema era o Baleia. O focinho dele não deixava dúvida, apontava na direção do frango... As orelhas em pé, estalavam. O rabo levantado, teso, sinalizava o bote próximo. O Baleia também queria uma refeição quente... Ele iria arriscar tudo e certamente, como ele, não estava nem aí para as consequências caso fosse apanhado pelo padeiro.
Os dois correram ao mesmo tempo em direção à bandeja... O prêmio, douradinho, exalava o perfume gostoso de carne assada. A fome que dava voltas nas tripas vazias deu uma força extra nas pernas esquálidas dos dois contentores.
Ele foi um décimo de segundo mais veloz que o Baleia. Para sua sorte ele conseguiu passar na frente de um carro que seguia veloz pela rua. O Baleia teve que parar e depois o instinto de preservação o fez recuar para escapar do atropelamento.
Ele lançou as duas mãos em direção ao frango, os dedos transmutados em tenazes. Pegou o frango assado e na mesma corrida fincou a ponta dos pés na calçada preparando a fuga.
Tudo aconteceu muito rápido. No primeiro momento ele não entendeu como o padeiro se virou tão rápido em sua direção ao mesmo tempo em que pulava o balcão da padaria para interceptar a sua fuga.
“Será que o sovina do padeiro possuía um olho na nuca?” “Só podia ter, não havia outra explicação”. Ele não viu que o padeiro a tudo observava pelo espelho por cima do lavatório.
Na barôa, na gingada de corpo que ele deu no padeiro, ele ganhou tempo para atravessar a rua e tomar a rota de fuga planejada. Mas o padeiro era forte, ligeiro. Recuperou-se e correu em sua perseguição.
Ele conseguiu passar na frente de um carro, desviou de uma motocicleta, derrubou um catador de papel e enquanto ouvia os impropérios do homem deu um pontapé num flanelinha “puxa-saco” que queria ganhar pontos junto ao padeiro e num suspiro atravessou a latada que cercava o terreno baldio. Agora era continuar correndo para chegar à outra rua e desaparecer no bairro para degustar o difícil e merecido prêmio.
Ele só não contava com a esperteza do perseguidor. Quando despontou na outra rua, o padeiro o esperava com um porrete na mão.
A cacetada que ele tomou nas costas o fez largar o frango e contorcer-se de dor. Sem forças e derrotado, ganindo de dor quedou-se resignado e encolheu braços e pernas se preparando para apanhar mais.
O padeiro com desprezo empurrou o frango assado todo empoeirado com o pé e com um esgar de ódio nos lábios contraídos preparou-se para dar mais uma paulada nas costas do vagabundo atrevido.
O pobre diabo se encolheu e virou uma bola de medo e terror. No íntimo não lamentava a surra que ia levar. A sua maior dor era perda do frango, mesmo porque, antes dele cobrir os olhos embaçados de lágrimas de dor, ele conseguiu vislumbrar o Baleia se aproximando a toda velocidade. Ele tinha certeza que o Baleia seria o grande vencedor. Degustaria o frango, depois lamberia os beiços e arrotaria com enorme prazer. Não estava com inveja, apenas constatava um fato. Ele no lugar do Baleia, certamente faria o mesmo. “A sobrevivência, amigo, não depende só da velocidade, depende também e muito da esperteza. E nesse ponto, amigo, o Baleia ganhava dele de lavada”.
Sentindo a dor antecipadamente, ele viu por entre uma nuvem de pavor o porrete descendo em sua direção.
Ele não viu, apenas vislumbrou um vulto marrom passar velozmente por cima dele ao mesmo tempo em que ouviu um grito. “Ué! Eu não gritei. De onde é que veio esse grito?”
Abriu os olhos e não acreditou no que viu. O esquálido Baleia mordia com a fúria de um “pit bull” ensandecido o pulso do padeiro. Urrando de dor o padeiro soltou o porrete e com a outra mão tentava livrar-se do vira-lata maluco que mordia seu braço tenazmente.
Aproveitando-se da confusão, ele pegou o frango e tomou outra rota de fuga. Foi esconder-se em uma antiga casa abandonada a duas quadras de distância, bem longe do padeiro e do Baleia.
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Cuidadosamente ele limpou o frango, puxou um engradado de madeira, limpou uma folha de jornal que estava jogada em um canto e a estendeu por sobre o engradado à guisa de toalha. Depois, lambendo os lábios arrancou uma coxa, douradinha... E se preparou para dar uma bela de uma dentada naquela delícia...
Porém, ao levantar os olhos, sempre vigilantes, deparou com os olhos do Baleia que o encarava sentado sobre as patas traseiras.
A tensão entre os dois dava para cortar com uma faca, se ali estivesse uma.
Com a coxa do frango na mão, ele ficou ereto e caminhou em direção ao vira-lata. O Baleia levantou-se e mostrou as presas.
Ele cuidadosamente abaixou-se e num sinal de paz ou armistício entregou a coxa para o Baleia. O cão mordeu o pedaço do frango com volúpia e ganiu com satisfação. Ele voltou para a mesa improvisada e estalou os dedos chamando o cachorro. Incontinenti o Baleia se aproximou e, juntos, degustaram o merecido almoço.
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Horas depois os dois passaram altivos em frente à padaria. Um freguês do padeiro, com um sorriso jocoso comentou:
-Aí, portuga! Olha lá, aqueles dois. Não são os mesmos que viviam brigando pelos restos de comida ali na lata de lixo? Olha só! O cara está andando todo garboso e o vira-lata Baleia abanando o rabo e correndo em volta do vagabundo.
-Pois é, opá? São restolhos do lixo. O gajo pode até mostrar-se garboso, porém, olha lá, está andando troncho, resultado da paulada que lhe dei... Opá!
-Pode até ser portuga, mas que eles estão contentes com a amizade deles, eles estão. Parece até que sempre foram amigos e que nunca brigaram pelo lixo. E tem mais portuga, isso você não pode negar.
-O quê, opá?
-Que eles formam uma boa dupla, não resta dúvida... Estranha, mas uma boa dupla!
Segurando o pulso dolorido, o padeiro resmungou entredentes.
-Sim, uma dupla de vagabundos e ladrões, opá!