Cinderela baiana
Arthur, médico baiano, morava com sua esposa e dois filhos em uma bela e confortável casa no bairro da Pituba. A janela de seu quarto de dormir emoldurava uma vista fantástica, mar ora esverdeado ora de um azul intenso, dependendo da quantidade de nuvens e da intensidade do sol, onde navegavam barcos a vela trazendo turistas, que deslumbrados percorriam o trecho que vai da praia do Rio Vermelho até a praia da Pituba.
Sentado em sua cama sem muita preocupação, ele relembrava seus primeiros momentos passados ali naquela casa. Depois de batalhar bastante pelo interior baiano, trabalhando em postos médicos de prefeituras e em pequenas clínicas, e de inúmeros cursos e estágios com reconhecidos profissionais de sua área de atuação, a cardiologia, ele conseguira impor respeitabilidade ao seu nome, montar clínica própria em Salvador e pelo seu trabalho criterioso e incessante juntar pequena fortuna, toda empregada na compra daquela casa, ainda não totalmente concluída. O trabalho de conclusão veio com o tempo, seis anos.
No início eram só ele e a esposa, moça bonita do interior baiano, de personalidade forte, como falam quando uma pessoa que luta por seus direitos e o faz abertamente, sem subterfúgios ou rodeios. Estava sempre em choque com aqueles que gostavam de tirar proveito dos mais fracos, aqueles que não respeitavam as leis e o espaço dos outros, por se considerarem espertos. Fora isso, era uma pessoa dócil, educada e por demais consciente de seu papel de esposa de médico, obrigada a não contar com a presença do marido quando de seus plantões.
Para ajudar nos afazeres da casa, principalmente no quesito limpeza, devido à poeira da casa em construção, Mariza conseguira trazer do interior Margarida, mulher de dezoito anos, mãe solteira de uma bela criança que pelo batismo recebera o nome Magda. Com a ida de Margarida para a capital, a menina ficou sob os cuidados da avó materna.
O casal só conheceu Magda no dia de seu aniversário de dez anos. Margarida, agora casada com um petroleiro, funcionário da Petrobras, levou a filha para a casa dos patrões naquele dia porque não queria deixá-la sozinha em casa. O padrasto, que trabalhava como mergulhador em plataforma submarina de petróleo, encontrava-se embarcado, só retornando dois dias após. Sua permanência na plataforma girava em torno de oito a dez dias, imergindo de duas a três vezes a uma profundidade de mais de 300 metros, equivalente à pressão que pode atingir 30 atmosferas ou 45 toneladas.
Ao chegar à casa de Arthur e Mariza, Magda se sentiu como entrando em um palácio. Acostumada a brincar como se estivesse em um reino encantado, ela se transportou para as suas estórias. Via-se de vestido longo, sapatos altos e cheia de jóias. Ao pé da escada que dá acesso aos quartos e à grande sacada de frente para o belo jardim e piscina, Magda parou e vislumbrou a figura de seu príncipe encantado descendo vagarosamente, indo ao seu encontro. Na verdade, quem descia era Arthur, todo de branco, já pronto para ir para o hospital onde trabalhava.
Magda jamais esqueceu aquela cena. Depois do desencanto, correu para a cozinha e lá ficou calada e sem esboçar um movimento sequer até ser chamada para almoçar, o que também aconteceu em completo silêncio. Preocupada, sua mãe quis saber o que estava acontecendo, pois a menina sempre foi de falar bastante e aproveitava o almoço para contar para a sua avó as fantásticas aventuras vividas por ela em seu imaginário infantil.
Os patrões de Margarida sabiam do aniversário da criança e também do seu interesse por estórias de príncipes e princesas. À tarde, já livre de suas atividades profissionais, Arthur entrou na cozinha de sua casa carregando um bolo confeitado e com dez velinhas, simbolizando os dez aniversários da pequena Magda. Trazia também um pacote embrulhado em papel de presente, que ao ser aberto pela menina deixou à mostra dois livros de estória, Cinderela e A Gata Borralheira. Estes dois livros a menina leu e releu até suas páginas ficarem gastas, ela sabia de cor todas as estórias neles contidas. Sabedor disso, Arthur passou a presenteá-la todos os meses com livros de estória envolvendo príncipes e princesas, sua biblioteca com esse gênero de estória cresceu demasiadamente, chegava aos 100 livros, e a garota ficava cada vez mais esperta e interessada, pois procurava imitar os personagens de seus livros.
Mesmo aos quinze anos de idade, a fantasia reinava em sua mente. Ao término de cada leitura e releitura, idealizava-se no papel da princesa e vinha sempre a imagem da escada da casa de Arthur, embora sua mãe já não mais trabalhasse para o casal, contrato de emprego interrompido três anos após a visita da garota à casa dos patrões da mãe. Seu padrasto também já não habitava a casa das duas, que as deixara para ir viver com uma garota bem mais nova que ele. Foi só sofrimento. As duas passaram fome, Magda deixou de estudar e Margarida comprou uma máquina de costura e passou a confeccionar fardas para profissionais de zeladoria. No início, o pouco trabalho que conseguia mal dava para as despesas da casa. Por tudo isso, Margarida começou a exigir cada vez mais da filha, chegando a rasgar todos os seus preciosos livros de estórias, que ela guardava com muito carinho. Foi como se toda a sua infância e adolescência caísse no vazio, lentamente ela se recuperou, mas sequelas ficaram, ela sonhava constantemente com a cena da mãe rasgando seus livros e a imagem da escada se sumindo, voando por efeito especial, muito utilizado em novelas de TV.
As reclamações constantes de sua mãe eram para ela trabalhar, cooperar para as despesas da casa. Magda só pensava em voltar a estudar, mesmo que em curso noturno, pois se encontrava em defasagem escolar, isto é, com quinze anos só tinha a quinta série do primeiro grau.
Os acontecimentos após a saída de Margarida da casa de Arthur, ele só tomou conhecimento recentemente, após encontro com Magda, agora com vinte anos. Esse contato só foi possível porque ela o encontrou no site de relacionamento facebook. O primeiro contato foi tímido, só aquelas palavras ditas por duas pessoas que não se entrevistavam há muito tempo. A despedida também foi seca, boa-noite, até outra oportunidade.
A partir daí as preocupações de Arthur aumentaram. Moça feita, Magda sempre procurava intervir toda vez que ele estava on-line, a cada investida vinha sempre o convite para um encontro entre eles. Fazendo-se de desentendido, o convite era sempre recusado. A insistência continuava e o médico sempre recusando, até que as ameaças começaram. Se ele não aparecesse ao próximo encontro ela inventaria uma estória com os dois para ser contada à esposa do médico. Ele sabia que explicar para a esposa que não tinha qualquer envolvimento com Magda levaria muito tempo. Mariza, mesmo sem motivo, fazia muita confusão quando ela desconfiava do assédio de alguma paciente dele. Era discussão para mais de uma semana.
Para evitar esses aborrecimentos ele concordou em comparecer ao encontro, marcado para um restaurante localizado na BR. Antes disso, Arthur falou a um colega, psiquiatra, sobre o comportamento da moça. Ficou acertado que o colega iria, anonimamente, ao restaurante para tentar entender os desejos da garota. Eles programaram a utilização de um aparelho retransmissor de voz, a ser captada no áudio usado pelo médico amigo.
No dia e na hora marcados, os três estavam lá. O psiquiatra sentou-se a uma distância que lhe permitisse ver o casal perfeitamente. No dia anterior, os dois amigos estiveram no mesmo restaurante testando os aparelhos que usariam no dia seguinte. As duas mesas já ficaram reservadas. O gerente do restaurante estava ciente do que ali iria acontecer e cuidou para que ninguém ocupasse aquelas mesas no horário marcado para o encontro.
Arthur, constrangido, esperou que o garçom afastasse a cadeira para a moça sentar-se, só então ele puxou sua cadeira e sentou-se. Depois de algumas palavras sem muito nexo, ambos tomaram nas mãos o cardápio, para a escolha do prato a ser pedido. Arthur, antes disso, informou para Magda que não dispunha de muito tempo, em sua clínica havia muitos pacientes esperando por ele. Ambos pediram salmão ao molho de alcaparra.
Enquanto esperavam ser servidos, Magda iniciou sua investida contra o médico, que acuado e espantado procurava mudar de assunto, pois nunca pensara que a garota que conhecera há dez anos e só a vira uma única vez, estivesse tão apaixonada por ele. Era realmente constrangedor, ele com mais de sessenta anos, cabelos já grisalhos, estar ali sentado tendo a sua frente uma garota com pouco mais de vinte anos a procurar suas mãos com sofreguidão e a implorar pelo seu amor. O médico olhava de um lado para o outro, estavam em lugar público, para ver se havia alguém de seu relacionamento pessoal ou profissional.
Magda dizia palavras desconexas, chorava e fazia caras e bocas para Arthur, deixando-o mais constrangido ainda. Ela relembrou a primeira vez que estivera na casa dele, de como ela ficou extasiada com a beleza da sala, pela suntuosidade da escada que levava ao andar superior da casa, aos quartos. Que vontade ela sentiu de subir e ir ao quarto do casal. Que raiva ela guardava por sua mãe não a deixar realizar o seu desejo quando todos saíram de casa. Para ela, aquela escada povoou seus sonhos até o dia que lhe foram tirados e rasgados, pela mãe, os livros de história de princesas e príncipes, presentes de Arthur. Ela sonhava subindo aquela escada, vestidos como princesa e príncipe. Porém, nunca conseguiam atingir o seu topo, entrar no ambiente restrito ao casal. Depois de cada sonho vinha a depressão, inicialmente sem diagnóstico médico, ninguém acreditava que uma criança de apenas onze anos tivesse depressão. Como o quadro se agravara, o diagnóstico foi preciso. Perda de energia ou interesse, humor deprimido, dificuldade de concentração, alterações do apetite e do sono, lentidão nas atividades físicas e mentais, sentimento de pesar ou fracasso, alteração no batimento cardíaco, dores de cabeça, vontade de não sair de casa, Magda contava para ele as sensações sentidas durante o seu estado de saúde alterado. Para ela, só ele conseguiria tirá-la de tal situação, só o amor dele a salvaria.
Na tentativa de reagir àquela situação, Arthur resolveu falar como médico e dizer para ela que a depressão era doença reversível, que havia cura completa se tratada adequadamente. Que ele tinha um amigo médico psiquiatra que poderia cuidar do caso dela, e as despesas para isso ele podia custear.
Enfurecida, Magda disse que o seu caso não era médico, e sim um médico, ele. Já de pé, ela gritava para todos ouvirem: - eu amo este homem, desde os dez anos de idade! Ele é meu príncipe e eu sou a sua princesa. Esperei todo o tempo por este encontro, mas agora ele me renega!
Dito isso, ela desmaiou e os dois médicos, mais do que depressa, chamaram uma ambulância para levá-la ao hospital. Ela acabara de entrar em surto.