O Maestro

A loucura flerta com a genialidade. Dizem que o insano nada mais é do que uma pessoa que por um instante vislumbrou algo tão magnífico, novo e arrebatador mas não suportou tal conhecimento, e sua mente se trancou em algum lugar disforme e incoerente. Real e imaginário podem se misturar deixando a pergunta, o que é mesmo verdade? Não sabemos quando a insanidade chega, sabemos que ela vem sem avisar, sem bater à porta, e se instala para não mais sair.

Tamborilando os dedos na mesa está um respeitável senhor, com seu cabelo branco ondulado vindo até a altura dos ombros. Ele traja um simples, mas bem constituído vestuário. Camisa social branca de mangas compridas com uma calça marrom de brim, sapatos bem lustrados Tem o olhar perdido do tipo que não se interessa com o que está acontecendo ao redor, mas sim com as ideias que como engrenagens trabalham na sua cabeça. Está tomando uma xícara de café quente e comendo um pedaço de torta de frango num pequeno restaurante de beira de estrada, desses com boa comida, mas normas de higiene duvidosas, a última parada antes de Monte Formoso. É uma sexta feira fria, mas não cinzenta, o sol abraça a todos com sua luz. As garçonetes vão pra lá e pra cá atendendo aos pedidos num movimento tão regular que mais parece uma dança. O uniforme e o os sorrisos ensaiados as fazem parecer saídas de alguma fabrica de produção em série. Nas mesas uns caminhoneiros palitam os dentes depois de uma farta refeição, alguns jovens que resolveram parar para abastecer o estoque de bebida alcóolica que vão ingerindo na viagem e um casal com seus dois filhos. O velho continua tamborilando na mesa, agora fazendo pequenos gestos no ar com a mão direita. Uma garotinha olha aquilo e ri para ele, como se fosse cumplice das ideias do velho. Uma garçonete pergunta se ele quer mais café, ele a responde com um sorriso gentil e um balançar negativo de cabeça, ela vira-se bufando de tédio.

Ele observa o ir e vir dos carros na rodovia, as crianças correndo pelo lugar, o movimento das pessoas que entram e saem do restaurante. Ao longe, pela janela, contempla o mar verde formado pelas copas das árvores, pedaço de Mata Atlântica que termina no sopé de uma alta montanha, hoje com seu pico encoberto pelas nuvens. Ele perde bons minutos se imaginando como o primeiro explorador a chegar ao topo do monte e fincar sua bandeira, e como seria ser o dono de tudo olhando seus domínios a perder de vista. Não se sabe nada mais sobre dele, de onde veio, para onde vai, quais são seus medos, anseios e pecados. É mais um tipo feito de carne, ossos, pensamentos, artérias, desejos e desilusões, exatamente como qualquer elemento da espécie denominada ser humano. Todas essas imagens, sons, cheiros e lembranças desenham em sua cabeça uma melodia complexa e ele, alheio a tudo, assobia trechos dela.

De repente as pessoas se transformam em integrantes de uma grande orquestra, e ele intensifica os movimentos com as mãos, como se quisesse marcar o andamento de uma música que só ele entende. Está agora no Grande Teatro Municipal, para uma plateia delirante. Levanta-se bruscamente da mesa e vai em direção às garçonetes tentando agrupa-las em um mesmo local, como se fossem os violinistas, a princípio os clientes estranham tal ação, mas não demora muito risadas e deboches preenchem o lugar. E numa determinação invejável o velho começa a colocar todos em seus respectivos lugares, violinos, oboés, clarinetas e flautas. Para ver até onde ia ou para não desejar encerrar o motivo dos risos, os clientes se deixam levar pelo senhor, que solfeja melodias para cada grupo de pessoas. Seu rosto brilha, suas mãos suam e as risadas cada vez mais intensas são interpretadas por ele como os primeiros compassos da Nona Sinfonia de Beethoven. Existe algo ou alguém dentro da sua cabeça que tomou o comando. Ele movimenta os braços e fecha os olhos como se interiorizando a emoção que tal música lhe causa. Sai do restaurante e continua o seu ofício de maestro, girando e movimentando os braços como se estivesse regendo o mundo com sua batuta. Não existe desespero aqui, nem dor, nem sofrimento. Só melodia. Sem se dar contar do perigo ele caminha em direção à rodovia, e as pessoas que por um instante achavam graça naquilo são tomadas por uma sensação de terror. Eles gritam alertando ao perigo, mas alheio a tudo, o maestro segue com sua arte. Alguns dos jovens correm para tentar evitar uma tragédia, o restaurante encontra-se logo após uma perigosa curva, e não é raro acidentes acontecerem ali. Mas o velho continua com sua regência e a música purificando sua alma, está agora fazendo estrondar os acordes entoados pela sua orquestra, seu espírito está harmonizado.

O grande sol amarelo acima da sua cabeça é como os refletores do Teatro Municipal. Ele atravessa a pista e para no meio entre uma faixa e outra, pronto para finalizar o seu ato. Os motoristas que vem em alta velocidade mal podem acreditar que estão vendo um senhor de idade de olhos fechados balançando os braços e tem dificuldade para desviar os carros. As buzinas são como gritos e aplausos de uma plateia enlouquecida, ele nunca esteve tão feliz, a sua apresentação chega ao fim. Uma enorme carreta carregada com minério não consegue parar após a curva, e sob o olhar aterrorizado e gritos de pavor da multidão o veículo o atropela passando suas rodas sobre sua cabeça, e depois se chocando contra uma murada de proteção. Em algum lugar do espaço-tempo sua melodia ainda será ouvida. Por hora ele encerrou seu ato. Seu corpo jaz em vários pedaços pela estrada.