OS DIAS CONTADOS

 
 
 
            Todo mundo era ilustre. Cortejava: 
 
           “- Vai graxa, doutor?” 
 
            O fulano envaidecido sentava-se na poltrona da engraxataria, arregaçando as calças próximas dos joelhos, expondo os pés.
 
         Conquista, o engraxate, homem abalizado e zeloso com a profissão, a qual  lhe restara, espiava de baixo para cima o quanto são esconsos os clientes, à medida que os seus setores vêm próximos do chão. Detinha-se aos calçados. Analisava, percutindo. Deitava graxa: a primeira demão.
 
         Enquanto secava, discutia o Corinthians com filosofia. Torcedor analítico, demonstrando críticas segundo o cliente interessasse ou não pelo futebol. Rádio em sintonia no jogo, olhos abertos com os cartolas. A campanha do time parecia-lhe pouco simpática. Mas rememorava ídolos: Rivelino, Biro-biro, Palhinha, Sócrates...
 
         O cliente, por vezes tendo uma opinião definida, achava o futebol de hoje uma palhaçada. Conquista passava deste para outro assunto, sem desapontamento. Política. A situação, assim descambada, anda mais para urubu do que colibri. Congelamento. Moeda nova. A inflação dos corruptos. Maminhas de vacas. Muito dinheiro na dívida, e o FMI era duvidoso. Achava o ministro suspeito. Era patriota, relembrava o Estado Novo: 
 
         - “Falta Getúlio neste País, doutor”. 
 
         Tossia.
 
         A segunda demão. Enquanto a graxa ia secando, experimentava o cliente: 
 
         - “O doutor viaja na jardineira das quatro?”
 
         Seguindo o fio da meada, passava a dar esclarecimentos ao sujeito, demonstrando conhecer detalhes do itinerário a ser percorrido. Pronunciava as vantagens. As ruas principais, gentes pitorescas, fatos memoráveis... Não se espantasse o doutor, porque ele, Conquista, conhecia a região por força da labuta. Antes da engraxataria, fizera ofício de carreiro de bois, charreteiro, zelador da estrada-de-ferro, até outros afazeres esquecidos.
 
         Batia flanela, lustrando as botinas do cavalheiro. Tossia.
 
         Da estrada-de-ferro, zelou dezessete anos, desde os tempos do finado Quaresminha Ferro-Fumaça. Num dia de azar, um dormente de aroeira, ele não tolerou o peso, caiu-lhe nas cacundas e dali em diante seguiu aposentado com mixes. Curou-se com banho de fedegoso, folha de fumo e urina fervente. Restou-lhe o aleijume. Só se viu prestar mesmo para engraxar sapatos. Primeiro, largou para trás a mulher. Vendo certo no negócio aqui na estação, foi e veio com a família para a cidade. Ganha para os filhos.  Menino homem já estuda na escola, mas repetente na quarta série duas vezes. Ano vindouro, as  despesas com cadernos já serão com as meninas.
 
        Apontou para o prédio frente à estação, Hotel dos Viajantes, onde a esposa lava e passa.
 
       “– A sorte, doutor, é a mulher“.
 
         Nessas horas, descansado da tosse,  evidencia a mágoa teimosa no falar.
 
         “–  Jardineira da vida, doutor, todo fulano embarca, mas para uns o rumo é mal discutido. E tem a vez do sujeito apear até sem querer;  mas, adianta lá  recriminar quando é a derradeira parada?”
        
         Cliente sem assunto, o engraxate relanceia com graça.
 
        “-Eu, a viagem segue a meio caminho, e também conheço quando desci na estação. Jardineira aqui tem a hora qualquer, toma o rumo da vida qual escolher”.
 
         Cliente, um nó na garganta.
 
         “- Boa-viagem, doutor”.
 
         Da janela do ônibus, o passageiro retribuiu simpatias. Conquista, da plataforma de embarque, ficou conferindo a gorjeta, e dali, cortejou o próximo cliente:
 
          -Vai graxa, doutor: duas demãos?
 
                                                   *
 
         Conquista elevou a mão à boca, escondendo a tosse. Expectorou e engoliu. Não vacilou:
 
         - Freguês tem a cara de quem é. Logo descobri, é um
doutor.
 
         O médico foi com o tipo, falaram do Corinthians, das Diretas-Já, do Getulismo e das impressões da cidade aonde viera instalar o consultório.
 
         O engraxate tossiu e expectorou, mas de emoção largada, festejando o merecimento de tornar-se o primeiro paciente do doutor. Ia saber porque a tosse insiste depois do tratamento no sanatório.
 
         - De um tombo com a viga nas cacundas, curei lá com os emplastos de casa, mas acabei escarrando sangue e franzino de magro. Tuberculose. Uma época de medicina atrasada por nossas bandas, doutor. Digo bem, saí do sanatório da Comarca e eu não tinha nada. Fui ser engraxate por causa do aleijume. Só.
 
         Tossiu. E desleixou: 
 
         - Agora, até acho, essa tossinha é coisa boba, um costume. Visito o doutor, porque vejo a pessoa quem é.
 
         No primeiro exame, o doutor abalizou os sintomas. Falta de ar, tontura, dor nos peitos de vez em quando... O peso segue perdendo... O cigarro de palha, ao cujo aderiu faz desde rapazote...
 
         Melhor uma chapa dos pulmões, concluiu o doutor.
 
         Passado uma semana, era tardinha, o carro das cinco e quinze trouxe o Conquista e, com ele, a radiografia. O doutor elevou o filme contra a luz. Recorreu ao laudo do radiologista, amargou a confirmação, porque as imagens sugeriam  tumor avançado em ambas as áreas pulmonares. Voltando ao Conquista, encontrou-o gracejando e exigindo- lhe esperanças no semblante, sem lhe ocorrer a mínima idéia sobre o restinho de vida sobrante.
 
         Tossiu, e desta vez, até devido a emoção do primeiro paciente, receou de gosto de sangue vivo na boca:
 
         - E então?, perguntou, depois riu: - O doutor acha mesmo, a minha jardineira chegou no fim?
 
         O médico, gracioso e mudo,  acompanhou-o até a porta.
 
         Na estação, nessa hora, formigavam os passageiros do Lugarejo, cada qual tomando o seu destino. Lá, a engraxataria aguardando pelo Conquista. Este que, vendo o doutor amarelo e abatido, tossiu numa forma de consolo:
 
        -  Acho certo, doutor...
 
        E admitiu um recurso derradeiro, para o médico dele ficar tranqüilo, porque, sendo preciso, faria todo o possível para evitar contrair uma friagem. Até poderia, assim, assim, nem estar com os dias contados.



* Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2.a Ed.

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 03/03/2012
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